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Foto do escritorFAUNAS teatro portátil

Antígona ou Eneias (não é possível ser os dois)

Fiz uma Antígona de Eduarda Dionísio (um abraço para o céu, que pena nunca ter conversado olhos nos olhos consigo apesar das palavras simpáticas e atentas que nos dirigiu, a mim e ao Joaquim). Percebo hoje que “Antígona” é uma personagem jovem cheia de fé, mas talvez ingénua ou, simplesmente, fora do nosso enquadramento espaciotemporal, fora desta primeira metade de séc. XXI no ocidente. Ela é uma encarnação da fé dos homens em si próprios e na sua capacidade de serem bons apesar da força das circunstâncias, apesar dos “movimentos históricos” (usando a expressão que Hannah Arendt usa várias vezes, em “As origens do totalitarismo”), apesar do TEM QUE SER. Isto não é algo reservado a heróis míticos, é aplicável às nossas vidas; há momentos em que sabemos que estamos a decidir o que efetivamente queremos ser e dar de nós ao mundo; se o fizermos inteiramente, amadurecemos e libertamo-nos das infantis necessidades de afirmação.

Antígona não era infantil, não tinha necessidade nenhuma de afirmação – interpretações ou manipulações dessas são pós-modernices que ilustram bem o estado a que chegamos, na arte e na sociedade –, ela escolheu. A morte memorável que deixou de si foi a sua mensagem, a sua vida eternizando-se. Mas Antígona tinha uma fé (a fé de Sófocles e talvez a fé de Péricles, sabendo no entanto que inventar ficções é sempre mais simples do que moldar sociedades na forma dos sonhos) que nós, enquanto sociedade, já não sabemos ter. Ela tinha uma fé inquebrável que não a deixava vacilar nos seus princípios, não a conduzia à derrota pelo “movimento histórico”, a força das circunstâncias ou o TEM QUE SER. Desenhando o seu caminho, tomando as suas decisões em consciência plena, ela não derrubou nenhuma força avassaladora. Porque essa força avassaladora que às vezes é sentida como intransponível é, afinal, dinâmica, adaptável e feita por todos nós. Não há que a temer, há que tomar decisões para nos integrarmos nela e a moldarmos também. Antígona fez isso.

Já Eneias, o fundador de Roma, descrito por Vergílio que amava e odiava Roma, o mesmo Vergílio que vivia no campo e escreveu as Bucólicas e as Geórgicas, numa espécie de resistência humanista à corrupção doente do poder, o que acontece com Eneias, apesar de ele proclamar a sua fé aos quatro ventos, é que ele vacila constantemente nos atos. Acaba vencido, sacrificado na sua humanidade pelo golpe baixo e impiedoso que dá a Turno. É como se ele, como homem, fosse devorado pela vida. O heroísmo de serviço ao poder aniquilou a sua humanidade.

O que Antígona tem de fresco, forte, clássico; Eneias tem de denso, frágil, decadente. Vivemos em tempos de Eneidas. Infelizmente. Nada é claro, já. Essa falta de claridade e de clareza residem num egoísmo confortável em que é tão fácil encerrarmo-nos. Sem fé, sem confiança, sem sonhos comuns, somos godo arrastado na corrente do rio. A vida, o “movimento histórico”, a fatalidade, a “mudança necessária”, o rumo dos acontecimentos atropela-nos, leva-nos consigo, aniquila as nossas identidades e os nossos brilhos.

Vejo as notícias no telemóvel. Uma captou a minha atenção: Um governo nacionalista, na Polónia, conseguiu aprovar uma lei que impedirá os cidadãos que exprimam opiniões “pró-russas” de assumirem cargos de administração pública. Essa decisão será tomada por uma comissão. Portanto, uma comissão fará a lista dos polacos que tiverem opiniões “pró-russas”, determinando que os mesmos sejam impedidos de se candidatar a cargos públicos (os elementos do último governo antes do que se encontra em funções estão visados nesta medida). Por cá, o reitor da nossa universidade mais antiga exonerou de um dia para o outro o professor russo que (já reformado ou seja, por puro prazer em ensinar) dava aulas no Centro de Estudos Russos, depois de uma televisão ter dado enfoque à denúncia de duas jovens sobre as supostas ligações do professor ao kremlin, sem qualquer hipótese de defesa ou contraditório, sem qualquer ponderação, sem qualquer investigação, sem qualquer julgamento. Estamos, portanto, a perseguir pessoas pela sua nacionalidade e opinião expressa. Mas voltemos à Polónia. Há uma espécie de relação de amor-ódio, um complexo edipiano que a mesma tem com a Rússia, mas, mesmo que não tivesse – é claro que é por causa dessa relação doente neste contexto histórico de guerra na Ucrânia que esta medida extravagante aparece – devíamos questionar: É de uma democracia, isto? É isto o Ocidente? Porque a UE, o UK e os USA, calados, concordam e aprovam. E nós? É isto que queremos? Ser levados pela onda inexorável de uma luta pelo poder global, abdicando das ideias mais belas que conseguimos, até hoje, criar? A democracia não sobrevive sem liberdade, mas a liberdade não sobrevive no egoísmo.


29/maio/2023

Isabel Fernandes Pinto


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