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Cântaros

Foto do escritor: FAUNAS teatro portátilFAUNAS teatro portátil

Atualizado: 7 de mar.



A propósito da expressão “chove a cântaros”, tive uma conversa com a minha filha de dez anos sobre a importância que o objeto cântaro terá tido em séculos passados, quando não havia água canalizada nas casas e o cântaro era um objeto essencial, de uso quotidiano, na satisfação de uma necessidade básica. Hoje remetido a peça de museu, o objeto cântaro empresta a sua palavra a esta expressão tão familiar.

Pus-me então a pensar em como as palavras podem permanecer enquanto a realidade se transforma. Como se nos trouxessem recados, memórias, imagens para adensar o presente e sublinhar a velha máxima: “tudo passa”. Não foi sempre assim, não será sempre assim. As palavras que nos ficam do passado, usadas como panos velhos de que desconhecemos a roupa outrora vestida, podem ficar pela beleza da sua música, o jogo que a língua faz ao dizê-las (experimente articular c – t – r e sinta os movimentos da língua: na primeira consoante, a raíz levanta e se une ao palato mole, na segunda é a zona posterior que toca os dentes de cima, na terceira enrola para trás e se sacode para a frente) ou apenas pela inércia, a preguiça e o conforto do hábito de as dizer. «- Porque dizes “cântaro”? Sabes o que é? - Sei lá…» E não temos que saber nada, ninguém nos vem cobrar tal sapiência, principalmente quando a palavra que está em causa é tão boa, tão afável de dizer: cân-ta-ro.

“Chove a cântaros” (mas hoje, que transcrevo este texto do meu caderninho de capa preta não, hoje está um sol radioso de fim de Inverno, uma luz fria rasante prometedora de sol, mais lá para o meio do ano). Antes das torneiras, o cântaro ter-nos-á sido tão vital como a própria chuva. Facto é que o objeto se arredou do nosso quotidiano, mas a sua palavra permanece em nós.

Entre as palavras e a realidade há uma relação poética como aquela que podemos inventar entre o céu e a terra. O céu penetra a terra de água e luz, tal como as palavras penetram o real de clarividência e alimento. Também do real se exalam gases e vapor de água para colorir e adensar o céu de palavras como nuvens. A relação íntima entre as palavras e o real não cessa, não é incomutável, não é ordeira. Por vezes, somos assaltados por palavras antigas, pedaços de camisa ou calças que outrora usamos, roupas que hoje estão totalmente desintegradas. Questionamo-nos: Era esta a roupa? Era esta a verdade? Percebemos que sim, era. E percebemos que sim, já não é. Nunca foram mentira, simplesmente não eram imutáveis. É por isso que precisamos de ir buscar as palavras, aquelas com que queremos chover sobre a nossa realidade. As palavras fortes onde julgávamos alicerçado o real têm que ser resgatadas uma e outra vez, rapidamente perdem o brilho, a potência, a solidez. As palavras “direitos”, as palavras “compaixão”, as palavras “outro”, as palavras “amor” não são singulares; são antes junções, multiplicações, brincadeiras vivas de gente que sonhou, pensou e se ofereceu às ideias, às palavras. Também nós morreremos um dia, como os objetos museificados. É na forma que damos às palavras que a vida, o que foi e o que há de ser, tomará o seu rumo, a sua continuidade em bola, jogada entre as palavras e as coisas.

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23-2-2025 / 2-3-2025

Isabel Fernandes Pinto

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