Vir para a sala de ensaio sozinha é quase uma contradição. Ensaiar o quê se não tenho com quem? Que brincadeira é esta que faço com os meus botões… Brincar com quem? Brincar com o quê?
Rápidas, as respostas. Brincar com aqueles que virão: o público. Mas, também, com aqueles que transportamos connosco, na memória e na imaginação. Brincar com o quê? Ui, tanta coisa… Tenho um dispositivo cénico mesmo ali, montado. Aqueço o corpo, a voz. Filmo as minhas improvisações, vejo-as, analiso-as, refaço-as.
Enceno-me. É duro? Terrivelmente. É preciso um esforço do catano para superar a inércia? Sempre. Venho ensaiar sozinha, toda feliz e contente, porque “faço aquilo de que gosto”? Quase nunca. Mas sei que há um sentido nisto que faço. E sei que não procuro o que “resulta”, os truques testados e superficiais que nos envaidecem. Procuro algo perante o qual sei que sou pequena, falível e fraca. Procuro uma coisa que não posso explicar, pois se a soubesse dizer não seria essa procura verdadeira e estaria apenas a mentir, a criar efeito para ver se “resulta”.
Há algo de perigoso, íntimo e abissal em estar aqui. Mas é claro que não poderia estar noutro lugar, noutra situação. Acompanhada, sim. Veículo para a vida, sempre.
Crio para não me desfazer em lágrimas nem me esparramar no brilho dos espelhos. Crio como quem passeia pela vida: dando um e outro passo; deixando as pegadas para trás.
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Um homem que afirma é uma planta em flor. Longa vida aos que dizem algo, porque os seus corpos e os seus nomes morrem, mas as suas afirmações vivem e transmutam-se e materializam-se nos vários movimentos da vida.
Estou assoberbada. Transbordando pensamentos, preocupações, lutas. Quem luta também precisa de repousar. Penso no Alberto Carneiro dizendo “há quem diga que sofre muito quando cria; eu não sofro nada”. Preciso de deixar de sofrer. Só isso. Sinto-me assoberbada porque guardo muito, acumulo muito. As minhas albardas estão cheias. Chega. Larga. Para com isso de acumular, Isabel. Sê canal. Estás sempre a falar de ser canal. Sê canal. Não te feches, não guardes, não ressintas. Abre o fluxo da vida que te atravessa. Desencaixa as comportas-medo. Desatarraxa-as dos gonzos e deita isso tudo fora. Ama.
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Isabel Fernandes Pinto, 2021
créditos da foto: Joaquim Pavão
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