LABORATÓRIO DE TEATRO COM A COMUNIDADE
REFLEXÕES | Isabel Fernandes Pinto
1.
O que é teatro? O que é “representar” ou “interpretar”?
Faço-me estas perguntas a cada quarta-feira, quando, às 21h, entro no Espaço 226 para participar no Laboratório de Teatro com a Comunidade.
O que fazem os atores?
Em inglês, “they play”.
Em francês, “ils jouent”.
O que, traduzido literalmente para português significa “eles jogam”.
Jogar é, pois, a essência do ato de representar ou interpretar. Jogar é o verbo essencial do trabalho de ator.
É importante conhecer e refletir sobre isto, porque, ainda que não o faça a tempo inteiro, sendo ou não profissional deste ofício, eu serei ator durante duas horas por semana até à apresentação de um espectáculo onde também serei ator. Serei ator ensaiando e em apresentação, serei ator comprometido na construção de um espectáculo de teatro. Irei jogar como ator.
O que é então necessário para jogar?
- Estar disponível. Para isso “fazemos ginástica”, usamos técnicas de relaxamento, tentamos conhecer o nosso corpo e controlar as nossas tensões. Queremos estar alerta e prontos para responder a qualquer estímulo.
- Comprometermo-nos com o grupo. Para isso começamos cada sessão com a nossa roda, para isso nos abstemos de fazer ruído, obedecemos a regras, aprendemos a dar o foco e a ter o foco, aprendemos a dar e a receber. Iremos exercitar a confiança e partilhar a construção de uma celebração cultural conjunta.
- Incorporar a imaginação. Esse será o desafio dos próximos tempos. O ator de teatro faz acontecer mundos imaginários através da sugestão: um movimento, a voz, a utilização de um elemento. Cada presença em palco é símbolo, agregando em si leituras e construindo pontes entre o espectador e o imaginário.
A cada quarta-feira estou de passagem, sendo presente.
13/junho/2014
2.
Fazer teatro é ensaiar a vida. As crianças sabem isto muito bem. Espontaneamente, elas usam o jogo dramático para experimentar possibilidades, sonhos, emoções, sentimentos.
Nós somos adultos, agimos numa outra consciência.
Se uma criança estiver perante uma plateia e lhe apetecer espreguiçar, o mais provável é a criança espreguiçar-se. E, claro, através da reacção do público ela vai começar a aprender se aquele era ou não o local e o momento socialmente aceitável para o fazer. E esse será mais um passo na caminhada de aprendizagens sobre a teia de regras que rege as nossas vidas.
Se a mim, que sou adulto, me apetecer espreguiçar perante uma plateia, eu tenho duas opções extremadas: ou me contenho e canalizo essa vontade para um contexto aceitável, ou, não contendo a minha vontade, transgrido deliberadamente uma regra. Porque eu, adulto, apreendi a teia de regras onde me movo. E escolho: obedecer ou transgredir.
É por isso que não existem adultos que possam ser crianças grandes. É por isso que, crescendo, o leque de opções não se estreita, pelo contrário: abre-se; somos conscientes da escolha acerca do próximo passo porque conhecemos as regras do caminho.
O processo criativo implica opções de transgressão. Aqui, a transgressão constitui a anulação da regra para nos colocarmos num estado de disponibilidade para experimentar, aprender e construir um novo sistema de regras que irá estruturar a obra criativa.
Quando entro no Laboratório de Teatro transgrido regras da vida quotidiana, transgrido as minhas próprias regras sobre o que é bom/mau, bonito/feio, correto/incorrecto, estúpido/inteligente. Coloco-me numa situação de aprendizagem. Não me julgo se faço cara feia, figura ridícula, dou um berro mais alto ou sou mal-educada, porque aqui, neste espaço de criação, as regras que regem os meus comportamentos sociais precisam de ser transgredidas. As regras do meu quotidiano não têm lugar, porque eu, com cada eu que me acompanha neste laboratório, vamos construir uma nova teia de regras que sustentará uma nova realidade, um ensaio para a vida: o espetáculo.
29/junho/2014
3.
A palavra “Teatro” tem origem no étimo grego “theatron”, que significa “lugar onde se vai para ver”. Remete-nos, portanto, ao espaço físico de onde o espectador assiste ao desenrolar de um conjunto de ações de onde emanam significados.
O Teatro de Dionísio, onde os atenienses apresentavam as tragédias nas grandes festividades dionísiacas anuais, está implantado na Acrópole, um conjunto edificado que reúne vários templos. A Acrópole era um local de oração e celebração, sobranceiro à cidade de Atenas, de onde se avistava não só os bairros e as construções da cidade, mas também Pireu, o porto que ligava a cidade ao Mediterrâneo, ligação da cidade ao mundo que fez de Atenas o ponto mais brilhante da constelação helénica. Quem fosse ver teatro teria que subir a colina e ver a cidade. Quem se sentasse no hemiciclo sabia que, por trás do proscénio que servia de fundo à cena teatral, estava a cidade. E quem conhece as peças sabe do seu comprometimento atávico com a vida política; não por acaso o corego da primeira tragédia conhecida – “Os Persas” – foi Péricles, o homem que liderou Atenas durante grande parte do séc. V a.C., não por acaso essa mesma peça retrata a grande vitória dos gregos sobre os persas, em Salamina, onde o seu dramaturgo combatera poucos anos antes.
A cultura romana transformou o espaço do teatro num edifício fechado e, graças ao extraordinário desenvolvimento tecnológico da construção, o edifício autonomizou-se da paisagem, libertando-se da necessidade de terrenos inclinados para implantar a plateia inclinada através de engenhosos sistemas de apoios abobadados e porticados. Coincidência ou não, acontece um fenómeno equiparável ao nível dos conteúdos das peças. A peça de teatro autonomiza-se de preocupações políticas, emancipa-se do presente. O texto é estilizado. Copiam-se ou imitam-se os clássicos gregos, coloca-se o teatro dentro do teatro. A questão – o que se vê? – dá origem a diversas respostas.
Na Idade Média, o teatro, tal como todos rituais sociais que expunham o corpo – as termas, o circo – praticamente desapareceu, remetendo-se a algumas representações de milagres bíblicos nas igrejas. Foi no final da Idade Média, em pleno ressurgimento das cidades, que o teatro renasceu na Europa e, como da primeira vez, surgiu para ver e vendo a cidade. Um dos grandes focos do seu desenvolvimento foi a Procissão do Corpo de Cristo, o desfile anual das corporações que compunham a cidade, ordenadas hierarquicamente. À frente vinham os altos clérigos, os aristocratas, depois as corporações comerciais e artesãs e, por fim, a plebe. O desfile era marcado por paragens que davam lugar a danças, cantares e representações desses grupos. A cidade assistia à cidade “representando-se”, celebrando-se.
A partir do Renascimento até aos nossos dias o teatro autonomizou-se definitivamente, multiplicando-se em respostas à questão “o que se vê?” até ser possível a resposta “não se vê nada” e imensas outras.
Hoje, se fazemos teatro, já não há limite que nos cinja a ver a cidade, a vermo-nos a nós próprios ou a não vermos absolutamente nada. Hoje, se fazemos teatro, precisamos de nos perguntar: Vejo o quê? Esta pergunta é do encenador, é do ator, é do dramaturgo e de cada interveniente no processo criativo do espectáculo. Esta pergunta talvez não tenha uma resposta à partida nem no fim. Esta pergunta talvez seja um campo aberto onde cada interveniente dá de si. Cada resposta que dermos é semente, água e trabalho. Algumas respostas chocarão, discutirão, entrarão em diálogo. Esse é o pulsar vital do teatro. Não tenhamos medo de ver. Façamos deste campo nosso.
19/julho/2014
4.
No final de um percurso de laboratório, fica a sensação de que é agora que se está a começar. E ainda fica uma outra sensação: o tanto que há ainda para trabalhar e explorar. E ainda uma outra: o tanto que se conseguiu.
As flores não têm medo; abrem-se ao sol e ao calor. Assim é a pessoa que cria: aberta ao mundo, exposta. No término deste percurso, vejo essa coragem nos participantes do laboratório e penso como a expressão dramática pode encaminhar a pessoa no exercício da sua criatividade, que começa fundamentalmente na exposição do seu ser.
*
Havia um senhor de setenta anos que tinha uma juventude inusitada. Chegava antes do ensaio, estacionava e punha-se a ensaiar canções ao volante. Sorria muito, divertia-se, era visível o seu prazer em estar ali. Vinha dizer:
- D. Isabel, tenho esta canção…
- Não sou dona de nada…
- Pronto. Belita, vou-lhe cantar uma canção de que gosto muito.
Cantou. E cantou a solo no espetáculo, comandando uma cena. Este senhor era muitas vezes alvo de riso pelas suas intervenções criativas, autênticas, inusitadas. A candura juvenil com que brincava era incompreensível para a maior parte dos elementos do grupo. É evidente que ele não cantava bem; como nenhum elemento do grupo cantava bem, no sentido de uma utilização correta da voz. Mas aquele senhor desafinava ainda mais, esquecia-se do tom, enganava-se frequentemente. Seria talvez mais distraído, mais desajeitado ou, simplesmente, idoso. Mas este senhor que veio dar uma canção a escutar à encenadora, tinha uma imensa vontade de que uma porta se abrisse para ele poder entrar, participar, construir, celebrar a sua alegria com o grupo e o público.
A porta foi aberta (não poderia ser de outra forma, se essa é a missão de um Laboratório de Teatro Com a Comunidade). O senhor concentrou-se e, depois de vários ensaios e com a ajuda do grupo, conseguiu cantar aquela canção que comandava uma cena do espetáculo. Nos aquecimentos de preparação todos os participantes aprenderam aquela melodia e, na cena, todos deram a introdução da canção comandada por aquele senhor de voz áspera. Ele personificava a passagem do tempo. Atravessou o palco lá atrás, numa luz azul noturna e conduziu o Manuel-menino na sua metamorfose em Manuel-adulto. Nos bastidores, o grupo cantava baixinho com ele, solista.
O todo pode estar com a unidade, a unidade pode estar com o todo. E a base de todas as realizações é a vontade e a dádiva.
28/setembro/2014
Acerca do Laboratório de Teatro com a Comunidade e do espetáculo “Manuel” (texto da folha de sala)
São variados os desafios que se apresentam a uma ação de formação com estas características, dirigida a um público tão vasto e diversificado. O que é teatro para estas pessoas? Como é o jogo dramático para quem está habituado a brincar, para quem já se esqueceu de brincar e para quem durante os últimos vinte anos pisou vários palcos trajando uma ideia de cultura tradicional?
O trabalho fez-se essencialmente no processo de criar disponibilidade para ir à essência do brincar. Brincar não como um passatempo – quem quer “passar o tempo” se o tempo é vida e a vida é um bem precioso e tão efémero? – mas como atividade edificante. Desligamos todos os ruídos para observarmos a realidade, escutarmos os nossos impulsos e ligarmos a máquina maravilhosa da nossa imaginação. É tudo o que fazemos neste laboratório. O grande desafio está em desligar os ruídos. É preciso aliviar os cansaços e tensões excessivas – daí a “consciência corporal”. É preciso esquecer as múltiplas preocupações do quotidiano – daí a “concentração”. É preciso abandonar as defesas radicadas nos nossos medos – daí a “confiança”. É preciso responder aos estímulos do aqui e do agora – daí a “atenção”. Depois de tudo isto, apenas nos deixando conduzir pela nossa capacidade de criar, cada oficina/ensaio é um momento de descoberta de novas formas.
“Manuel” é o nome do espetáculo que constitui a apresentação pública final deste laboratório. Partindo dos dados biográficos de um músico popular desta região – Manuel Imaginário – foi traçada a história de um homem da região de Aveiro que percorre o século XX e o início do século XXI, passando por vários eventos comuns a tantos homens seus conterrâneos: a instrução até à quarta classe, o trabalho na fábrica (a “Vista Alegre”), a banda de música de baile aos fins-de-semana, a tropa, a emigração, a separação da família, a união e a prosperidade, as saudades e o regresso, cada etapa acompanhada pela vontade de cantar os momentos da vida, nas canções que o Sr. Manuel Imaginário compôs e escreveu. A este fio condutor junta-se o contributo vivo dos participantes do laboratório e, entre memórias e imaginações, há uma carta do emigrante para a mulher escrita por uma neta inspirada na história do seu avô; há um especialista que tudo nos ensina sobre porcelanas; há uma mulher que corre para o vapor à procura de um namorado que partiu; há um batalhão de militares convictos mas periclitantes. Tudo isto é verdade e tudo isto é mentira. Quando o comboio chega à cena e cada um desce para ir embalar uma criança invisível, não sabemos se é o passado, o futuro ou o nosso próprio amor que estamos a acalentar. Quando uma voz rompe o silêncio e as respirações, são todos os ouvidos que a cantam. É nesta profunda comunhão entre o indivíduo e o grupo que o teatro se celebra.
Que esta experiência possa ser uma bela passagem no caminho a que Agostinho da Silva chamava a maior obra de arte do homem criador: a sua própria vida.
Teatro Aveirense, 26/Setembro/2014.
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