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Acerca da polémica sobre o beijo que o Príncipe dá à Branca de Neve (foi ou não consensual?)

Atualizado: 30 de ago. de 2021


Só que os contos não têm que explicar nada; para isso existem as teses. Não, não têm que ser exemplos de vida (como as "vidas de santos" proferidas pelos religiosos abnegados). Os contos são caixas, baús, praças-fortes, cidades muralhadas, florestas que cercam algo tão íntimo e precioso que temos receio de lhe tocar - a nossa mente (será esse o termo correto?) - mas que queremos vislumbrar, compreender. Os contos têm que ser máquinas eficazes, pelo que, para cada causa, há de haver uma consequência clara - o que se verifica na versão Disney da Branca de Neve: para resolver a morte e a maldade de uma rainha, tem que haver algo definido e forte, neste caso, o beijo de amor puro. E é definido e forte para uma criança: uma criança sabe o que é um beijo (aliás sabe que o beijo na boca é algo muito especial que não se dá nem se recebe de qualquer pessoa) e (o autor incógnito chamado "povo" ou "público" diz que) sabe o que é "amor puro". Vai pedir com licença como se estivesse num salão? Mas este conto/filme é "popular". Vai acordá-la com um safanão para lhe perguntar? Vai explicar bem explicadinho os conceitos? Ó santa paciência... E depois há outra coisa: Sim, é possível "dar" um beijo, tal como é possível "receber" um beijo. E é possível, a seguir, se não quisermos mais, dizer, afastar, fazer queixa na esquadra, falar com os pais ou os amigos, etc. Talvez esses censores queiram viver no conto de fadas em que tudo o que é dado é recebido, tudo o que é recebido é dado, em bem, pelo bem e em beleza. Mas o mundo é feito de diversidade e de divergências. Em Barcelona há escolas a censurar o capuchinho vermelho e a bela adormecida. Cá em casa tenho uma miúda de 6 anos e leio-lhe todas as noites. Leio-lhe o que ela pede (ultimamente tem sido a "Imagipédia" e aprendemos juntas muita coisa) e conversamos sobre as histórias. Alguns contos me incomodaram quando estava a lê-los, por razões diversas. Numa fase, os contos que envolviam a morte, principalmente a morte dos pais, mexiam comigo. Mas contava e tentava estar atenta para entender o que ela percebia e como assimilava a história; não perguntava muita coisa para não reforçar os meus próprios receios, nela, e para a deixar livre nos seus processos mentais. Um dia, a mãe de uma amiga dela disse-me que tinha ficado muito espantada porque a amiga tinha chegado a casa e dito: "Olha mãe, estava preocupada sobre o que aconteceria se os nossos pais morressem, mas a minha amiga Amélia já me explicou: - Temos que ser fortes." Pronto. Agradeci aos contos. Numa outra ocasião, li-lhe "O macaco de rabo cortado", que é um conto - esse sim - extremamente racista; não porque mostre violência sobre os negros, mas porque tem lá dentro uma outra mensagem muito maldosa: ao "macaco" de África não lhe é permitido estudar, aceder ao conhecimento, transformar e fazer das coisas outras coisas. Li. Conversamos um pouquinho sobre o conto e arrumei-o na prateleira mais alta para depois, mais tarde, se ela quiser, o desmontar. Entretanto, a nossa filha vê de tudo - desde Miyazaki (o primeiro foi logo "A Princesa Mononoke") à Disney passando pela Pepa, os Green na Cidade Grande e a Masha e o Urso (de que já lemos contos na versão original) - e, claro, tornou-se fã do Frozen e adora as últimas animações da Disney. E é com curiosidade que verifico que a figura masculina das últimas animações da Disney está, de alguma forma, a perder um certo sentido de segurança a que normalmente o herói masculino dos contos de fadas está associado. Bom. É claro que, no Miyasaki há imensas meninas heroínas; mas os homens nunca são "totós", não se enredam todos a pedir um beijinho, como o da Frozen (como se o beijinho fosse tudo, não é, na Branca de Neve, o beijo é um gatilho: o botão que desliga a bomba-relógio). E, sinceramente, o que nos preocupa cá em casa, é, com estes sinais da notícia, estarmos a tentar (tentar, pode ser que não consigamos, para ser otimista...) criar uma geração de totós: a ou o totó que não aprende a dar um beijo, nem a receber um beijo, nem a responder "não quero o teu beijo" ou "quero mais beijos". Um ou uma totó que esconde o que sente (até de si próprio) porque estipulou que o mundo tem regras de comportamento muito rígidas baseadas no princípio do medo. Um ou uma totó que não se sabe nem se pode defender. Um ou uma totó que deseja um regime autoritário justamente porque não aprendeu a lidar com essa coisa preciosa: a mente humana, a sua própria intimidade. Não sei. Mas estas escolhas (como a da notícia) não são inócuas, podendo ou não ser consequentes.


Isabel Fernandes Pinto, 11/maio/2021

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