“As coisas belas,
As que deixam cicatrizes na memória dos homens,
Porque motivo serão belas?
E belas para quê?”
(António Gedeão)
As coisas da natureza, que aos nossos olhos, ouvidos, boca, pele e nariz são belas, saborosas e agradáveis, são-no sem o quererem ser. Estão demasiado ocupadas a serem o que são, para quererem ser alguma coisa aos nossos sentidos. As coisas belas da natureza existem por outras razões que não a beleza que lemos nelas.
Já as obras de arte existem para nada a não ser serem lidas. E fazemo-las porque nos é essencial ler.
É-nos essencial ler a realidade. A leitura e avaliação da realidade permite distinguir o saudável do infeto, o seguro do perigoso, o bom do mau, não só para os humanos, mas para todos os seres vivos. Estamos permanentemente a avaliar e a escolher o que nos é favorável em detrimento do que nos é prejudicial e, sobre essa avaliação, construímos padrões. Padrões éticos, padrões estéticos.
“Menino feio, não se faz isso” – diz a mãe à criança que ia por a mão no forno. Ética e estética são como duas estradas que se intersetam, cada uma com uma direção precisa: a ética vai dar ao direito; a estética vai dar à arte. Onde é que ambas se intersetam? Num ponto: estão ambas comprometidas com o ato de ler a realidade. Só que, embora a primeira, tenda a emitir formulações generalizáveis (as leis, as regras); a segunda tende a centrar-se nas interpretações subjetivas dessa mesma leitura. Então, percebemos que, porque a obra de arte pertence ao trajeto da estética e não ao trajeto da ética, ela não pode desembocar numa conceção clara, universal, fechada nem generalizável. Pelo contrário. A sua vida, a subsistência da obra de arte, depende da sua capacidade de continuar a suscitar leituras. “(…) belas para quê?” Para serem lidas. Será talvez para isso que servem as obras de arte. Não para nos dizerem o que é certo nem errado, mas para nos conduzirem pela questão: O que vejo?
O ser humano será, talvez, a única espécie que se vê vendo, que se vê olhando, que se vê contemplando. Seremos os únicos seres vivos que estabelecem as diferenças entre estes três verbos: ver, olhar, contemplar. O ato de ler uma obra de arte é, sempre, o ato de nos vermos lendo-a e que cada um de nós, público, é o emissor dessa leitura, tornando-se criador de um entendimento sobre a obra.
Nada disto renega que o estudo do contexto do autor, das correntes estéticas, do momento cronológico seja importante. Claro que é; a obra de arte, tal como outras criações humanas, contém uma dimensão de documento histórico e o testemunho do artista sobre a sua circunstância ajuda-nos a compreender os fenómenos de uma sociedade. Mas, antes da obra de arte ser documento e testemunho, é essencialmente um objeto para ser lido.
Enquanto todas as outras coisas da natureza a que chamamos belas servem para outras coisas ou acontecem por outras razões, a razão e função da obra de arte é esta: Ser lida. Assim, a partir do momento em que a obra deixa de ser lida, quando não houver mais nada a descobrir nela nem nada a dizer sobre ela, ela morre enquanto arte e passa a ser outra coisa, talvez documento ou testemunho histórico, na melhor das hipóteses.
Aquilo que a arte tem para oferecer às crianças, principalmente às mais pequenas, é a aprendizagem de uma leitura ampla do real. Essa leitura da obra de arte faz-se não como uma descodificação simples, univalente e sistemática, mas como uma construção de entendimentos plural, dinâmica e comprometida, no sentido em que o indivíduo está consciente da sua relação com a realidade e, também, da coexistência de outros observadores e de divergentes leituras. Aprende a ler, aprende a interpretar, aprende a confrontar leituras, aprende que ele próprio projeta o seu referencial de entendimento sobre a obra. Isto, claro, se acompanhado pela abordagem de um professor, educador, facilitador ou artista, que promova esse espaço de aprendizagem e crescimento.
Uma das coisas que mais me satisfaz, quando apresento “A cerejeira de Alberto” às crianças a partir dos 4 anos e converso com elas no final da peça, é perceber que, sobre os conceitos que Alberto Carneiro trabalhou e as obras que fez, elas fazem leituras. Elas leem sem pejo. Não acertam nem erram, porque não se trata de acertar nem de errar. Trata-se de construir entendimentos e isso, sim, elas constroem. Esses entendimentos não são iguais, não são unívocos, não são impostos, não são respostas fechadas e prontas a servir. Trata-se de construções. Trata-se do lançamento das fundações da sua própria consciência enquanto indivíduos leitores entre outros indivíduos leitores, capazes de entender, mas também de escutar outros entendimentos e de assumir as suas leituras sobre o real.
*na foto: cenário de "A cerejeira de Alberto" no Cineteatro de Vouzela, fevereiro/2023
Isabel Fernandes Pinto, março/2023
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