15 anos de Projeto Faunas - um breve retomar fôlego*
- FAUNAS teatro portátil
- 25 de jul.
- 8 min de leitura
*Texto redigido em 2020, integrado nas considerações finais do trabalho de natureza profissional para atribuição do título de especialista na área de Teatro – Artes do Espetáculo, pela ESMAE-IPP, com resultado de Aprovado.

Sobre fazer teatro nas escolas
«Os olhos não veem coisas, mas sim figuras de coisas que significam outras coisas.»
CALVINO, Italo – As cidades invisíveis. Lisboa, Dom Quixote, 2015 (obra original publicada em 1972).
Quando um grupo de crianças inicia uma brincadeira, elas distribuem papéis e aceitam um conjunto de regras para jogar. Quando essa brincadeira acaba, os papéis e as regras desaparecem. Às vezes, elas conversam e concluem que há regras que gostariam de mudar, ou optam por trocar os papéis. De novo inicia o jogo, para depois terminar. A criança que brinca desta forma compreende sem qualquer dificuldade a diferença entre o real e a ficção. Não acusa o camaleão de racista por escolher uma cor em detrimento de outras, não julga o macaquinho chinês como ditador por não deixar ninguém mexer, não acusa o colega de a impedir de se mover por lhe ter pegado no braço ao brincar às caçadinhas. A criança brinca e sabe que as regras de cada jogo o tornam distinto do contexto real. Assim acontece também com as histórias que a criança lê ou vê. Tal como descrito por Vladimir Propp, em “A morfologia do conto”, o lobo é mau porque está a cumprir uma função; a fada é boa porque está a cumprir uma função; o príncipe pode beijar a princesa porque está a cumprir uma função; o dragão ataca com fogo porque está a cumprir uma função. Nos contos de fadas, as personagens cumprem funções, tal como, nas brincadeiras, os participantes cumprem as regras. E, nestas “ilhas de ficção” perfeitamente circunscritas da realidade em volta, a criança – tal como o adulto atento – experiencia emoções, ensaia reações, toma contacto com a sua vida interior, lida com medos e frustrações, apreende significados e descobre sentidos que poderá, eventualmente, aplicar na sua vida, quando sair daquela ilha ficcional e prosseguir na sua realidade. Aprende. Mas aprende de uma forma não explicativa nem superficial, aprende de uma forma interior, completa e sustentada nas suas emoções e na sua consciência.
É nesta lógica que me parece que o teatro é uma ferramenta maravilhosa para públicos em aprendizagem. Claro que “públicos em aprendizagem” podemos ser todos nós, seria até uma expressão redundante se todos nós, independentemente da idade, mantivéssemos uma disponibilidade mental para deixarmos a ficção tocar a nossa interioridade. Esse toque é um acontecimento muito belo e, quando acontece, creio que é o que dá sentido e razão de existir ao nosso trabalho.
Gostaria de clarificar que, quando vamos às escolas fazer teatro, nós não vamos, nunca, ensinar. Essa função compete aos professores e nós não entramos nessa esfera. O que nós fazemos é outra coisa.
Quando apresentamos um espetáculo de teatro numa escola, nós vamos estabelecer um jogo, que é um processo que as crianças já conhecem. É por isso que, muitas vezes, nós – atores em cena – apontamos para um objeto invisível e as crianças viram-se ou levantam-se para o ver, a esse objeto invisível, durante o espetáculo. Elas participam no jogo porque sabem como este funciona e porque este lhes é extremamente importante e útil na construção da sua interioridade. Esta capacidade de criar um imaginário é a ferramenta essencial que nós, atores, temos e nos coloca na proximidade de um público capaz de imaginar. Acredito que é essa ferramenta que nos torna capazes de fazer o teatro acontecer em qualquer lugar.
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Sobre a procura de uma linguagem, nas minhas criações teatrais
«Para o poeta genuíno, a metáfora não é uma figura de retórica, mas uma imagem representativa que paira efetivamente diante de si em lugar de um conceito.»
NIETZSCHE, Friedrich – A origem da tragédia. Lisboa, Europa-América, 2005 (obra original publicada em 1886), p.58.
«L’action verbale, voilà ce qui fait du théâtre dramatique une des activités artistiques humaines les plus puissants et les plus impressionants.»
«A ação verbal é aquilo que torna o teatro dramático numa das atividades artísticas humanas mais poderosas e mais impressionantes.»
KNÉBEL, Maria – L’Analyse-Action. Paris, Actes Sud-Papiers, 2006 (obra original publicada em 1961), p.134. (tradução minha a partir do francês).
No final da minha licenciatura, inscrevi-me num estágio de duas semanas promovido pelo “Laboratoire de Recherches Théâtrales” e vim depois a realizar mais dois estágios subsequentes, espaçados por seis meses e com duração aproximada de duas semanas cada, sob a orientação de professores da escola de teatro de Moscovo. Essa formação veio a ter uma influência enorme na minha forma de abordar a criação teatral, principalmente através dos ensinamentos de Vladimir Ananiev (professor de movimento cénico) e de Irina Propovna (professora de voz teatral). Aí, contactei com o (erradamente) chamado método de Stanislasky (embora ele tenha dado um enorme contributo para a sua sistematização, não se pode dizer – ele próprio não queria ser reconhecido dessa forma – que o “método” seja da sua autoria) e pude constatar o grande e poderoso leque de ferramentas de trabalho com que este dota o ator, para lidar com o seu ofício. O nosso trabalho não é simples e não se resolve com um conjunto de respostas fáceis. O nosso trabalho implica, talvez, a pesquisa de uma vida. E, se tiver, pela força das circunstâncias, de se tornar numa atividade ocasional, ficará lamentavelmente aquém do alcance a que pode chegar.
Para além do treino de ator, compreendi também, à luz deste sistema, como o teatro se faz, fundamentalmente, na tradução do texto em ação metafórica. Dizer, no teatro, significa agir com palavras. A metáfora teatral é uma síntese composta por imagem, jogo, música, pintura e dança que guarda e liberta leituras e significados, transformando a palavra num acontecimento.
No Projeto Faunas, eu escrevo, enceno, interpreto e produzo. Não o faço sozinha, mas assumo necessariamente a direção de todo esse processo. Penso frequentemente nos três pilares vitruvianos que estudei quando cursei arquitetura – firmitas, utilitas, venustas – como base para a sustentação de cada opção, no meu processo criativo. Cada elemento que introduzo – seja uma ideia, uma personagem, uma palavra, um adereço ou um movimento – tem que estar agarrado à estrutura que sustenta o desenvolvimento do espetáculo, tem que acrescentar informação necessária e tem que ser coerente com a imagem estética da peça. Tento cingir-me aos elementos essenciais, explorando a sua complexidade, com vista a uma síntese próxima da metáfora, que será talvez definidora da peça de teatro: uma máquina (como disse Eisenstein) posta em marcha a cada espetáculo, um acontecimento que tem uma orgânica artificial e se traz à vida aceitando as contingências e imprevisibilidades do momento presente.
Tomo os constrangimentos à criação como um terreno onde irei construir. Talvez por isso me tenha sido relativamente simples aceitar a ideia de criar espetáculos para espaços não convencionalmente teatrais. Não creio que o teatro dependa de nada mais que não seja a nossa vontade de o fazer, a nossa inteligência para o utilizar como ferramenta para a vida. Não quero com isto dizer que fazer teatro não implique um grande investimento. Implica, sim, um enorme investimento de formação, estudo, treino, pesquisa, experimentação, diálogo, crítica e debate. Implica a profissionalização dos artistas. Num país onde é quase impossível “viver do teatro”, torna-se, de facto, quase impossível essa profissionalização e penso que é essencialmente essa carência que está em causa quando se fala do subfinanciamento crónico das artes, para lá do investimento na manutenção e gestão das infraestruturas culturais que já existem no nosso território. Porém, esse é um outro debate que não quero desenvolver aqui. Pretendo apenas dizer que, apesar de eu ter encontrado este modo de fazer teatro sem subsídio estatal, no projeto Faunas, não quero que isso seja tomado como exemplo. A minha circunstância, como a de outros criadores independentes, não é generalizável, mas o direito à cultura inscrito na Constituição da República Portuguesa deve ser efetivo, constante, estratégico e universal.
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Sobre o meu trabalho enquanto atriz
“(…) acidente não é arte, não pode servir de base para construção. O mestre-ator tem de exercer controlo total sobre o seu instrumento e o instrumento do artista tem complexo mecanismo. Nós, atores, não temos que lidar apenas com a voz, como o cantor, nem apenas com as mãos, como o pianista, ou só com o corpo e as pernas, como o dançarino. Somos forçados a tocar simultaneamente em todos os aspetos espirituais e físicos de um ser humano. A conquista do domínio sobre eles requer tempo e um esforço árduo, sistemático (…)»
STANISLAVSKI, Constantin – A construção da personagem. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2004 (obra original publicada em 1938), p. 389.
«A arte pressupõe sempre forma como suporte de uma carga emotiva.»
TÁVORA, Fernando – Da Organização do Espaço. Porto, FAUP, 1999.
Acredito que, na arte, a liberdade está do lado do fruidor, do público. O criador ou artista põe em marcha um canal para dar passagem a uma ideia. E o que é esse canal? A forma. No teatro, no trabalho de ator, a forma é o que compomos instantaneamente, dando vida por dentro e pensando por fora. Damos vida a essa forma pela energia, as imagens mentais e o subtexto que criamos. Pensamo-la por fora porque a nossa consciência vigia a expressão. Essa forma é o embrulho com que oferecemos um presente ao público. E, embora nós tenhamos uma ideia estudada do que é ou pode ser esse presente, não podemos controlar nem tão pouco tentar “educar” o público a apropriar-se desse presente. Nós somos responsáveis pela sua forma, que é o embrulho. Quando o espetáculo se dá, o embrulho é olvidado, o público fica com esse presente e fará dele o que quiser.
É por isso que o trabalho de ator me parece extremamente complexo e extremamente simples. Não ensinamos nada, não informamos, não exibimos, não explodimos; apenas fazemos acontecer. Este fazer acontecer de algo que é matéria de humanidade pressupõe uma preparação a vários níveis. Desde logo, a preparação física e vocal é extremamente importante e tem que ser um hábito quotidiano no trabalho do ator. Mas um espetáculo não é uma exibição e um ator não vai ali mostrar o que consegue fazer. Pelo contrário, quão mais fácil parecer o que o ator faz, mais próxima será a sua relação com o espectador, mais perto estaremos de tocar o público na sua humanidade. Então, o ator tem que ser ele próprio, despido de si e capaz de vestir todas as vestes que a humanidade usa. O ator tem que se reconhecer, não apenas a si próprio, mas a todos os aspetos da humanidade – essas informações que estão em todos nós, no nosso material genético – dentro de si.
Vejo a minha profissão de atriz como uma profissão que não se subdivide em especialidades. Reconheço que há atores especializados em determinados papéis e contextos, mas não é isso que busco. O Projeto Faunas é dirigido aos públicos escolares, mas, se não fosse o treino diário que tenho com ele, penso que não seria capaz de ter desempenhado a personagem de Antígona no filme “Antes que a noite venha – falas de Antígona” de Joaquim Pavão, para dar um exemplo. Em qualquer registo e para qualquer público, o ator dá passagem à humanidade. Recordo as palavras do ator Paolo Nanni, após uma apresentação do espetáculo “A Carta”, no Festival de Teatro Cómico da Maia, em resposta à pergunta “O que recomendaria a um jovem ator que quer fazer comédia?”: “Faça tragédia, primeiro”.
No Projeto Faunas trabalho para as crianças e aprendo muito com elas, porque elas têm aquela disponibilidade criativa, uma certa vulnerabilidade sem juízos, que é um estado fundamental para a descoberta da expressão e o exercício de criar. Porém, trabalho também para os educadores, os professores, os pais, os adultos, os idosos. Trabalho para pessoas. Os espetáculos que estreei depois de 2010, no projeto Faunas, que não estão tão vinculados a conteúdos pedagógicos, são dirigidos a todos os públicos, embora tenham particular procura por parte das escolas. Houve quem dissesse que “Fiandeira” era um espetáculo-cebola, em que cada pessoa do público extrairia a camada de leitura que quisesse. É com isso que sonhamos: trabalhamos para que o público seja livre na sua apreensão do objeto. O público nunca entende mal, o nosso objeto de criação é que pode ser diferente daquilo que pensamos que ele é. Crescemos sempre quando escutamos o outro, e, muitas vezes, é pela obra que essa escuta se concretiza em plenitude. Trabalhamos para a liberdade de pensamento, para a celebração do que somos em sociedade, para a realização do ser humano em plenitude. Caminhamos neste projeto vendo o teatro assim.
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2020, Isabel Fernandes Pinto
Parabéns, Isabel, por ter estudado e obtido o grau de especialista na area de Teatro, um doutoramento na área profissional bem merecido pelo trabalho realizado com as crianças durante os 15 anos do desenvolvimento do projeto "faunas", em diversas escolas deste país