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Um olhar de escuta

  • Foto do escritor: FAUNAS teatro portátil
    FAUNAS teatro portátil
  • 27 de jul.
  • 5 min de leitura

Ilustração do livro "Padaria", Isabel Fernandes Pinto, 2016.
Ilustração do livro "Padaria", Isabel Fernandes Pinto, 2016.

 

Há quase vinte anos, numa aula de teatro do Laboratoire de Recherches Théâtrales, em Estrasburgo, o Vladimir Ananiev exemplificou um exercício comigo. Abriu a palma da sua mão, colocou-a cerca de vinte centímetros à frente do meu rosto e disse-me:

- Segue a minha mão com o teu rosto mantendo a distância constante.

Assim fiz. Ele foi percorrendo a sala com a sua mão aberta e a minha cabeça, liderada pelo olhar que ele conduzia, levou o meu corpo como uma serpente ondulante pelo espaço, mantendo aqueles vinte centímetros de distância entre os meus olhos e a mão dele. Quando parou de exemplificar, dirigiu-se à turma e disse:

- Isto é amar. Amar é dar atenção.

Esta explicação não teve nada de sentimental, nem na sua emissão nem na forma como a recebi. O que Volodia (o nome carinhoso com que a turma o tratava – eu nem tanto, que tinha habitualmente uma postura reservada) demonstrou foi a simplicidade factual, a evidência que está implícita no ato de dar afeto. “Amar é dar atenção”. Não há outra forma de amar. Pode-se dizer palavras cheias de encanto, mas se as costas são voltadas ao interlocutor é porque não se ama. Simples.

Agora, a questão: Porque traria ele este exercício e esta tese para um processo de formação de atores? Porque definir o foco – objeto a que se dá atenção – é competência do ator. O ator não apenas dispõe as matérias em cena, o ator “ilumina-as” com a sua atenção. Essa “luz” é um olhar intencional, um olhar preenchido e presente. Esse é o olhar do ator capaz de conduzir o público, capaz de o levar a participar na ficção proposta, capaz de o incluir no imaginário teatral.

Tem-me acontecido algo curioso nos últimos anos. Sinto que cada vez sou menos performativa nas sessões que realizo como contadora de histórias. É como se eu me fosse despindo de artifícios e as últimas coisas que me ficam vão sendo estas: o olhar e a liberdade de brincar com o imaginário das histórias. Isto não acontece tanto com os espetáculos de teatro, em que o desenho de movimento, modulações vocais e composição cénica está moldado e cingido. Mas, mesmo aí, dentro dessa máquina construída e burilada, há espaço para o olhar.

Tentarei expor aqui o que entendo por esse olhar. É um olhar intencional, cheio de um imaginário construído. Mas é também – e principalmente – um olhar de escuta. Esse olhar de escuta é uma ponte para o outro. Quando estamos em coletivo na cena, o “olhar de escuta” é aquele que permite o jogo entre os atores, a contracena, aquela energia propulsora que pode acontecer entre duas pessoas. Não se trata de ver e intelectualizar. Trata-se de olhar escutando, um olhar imerso no outro, a criação de um ovo entre ambos: a atenção.

Acontece que, muitas vezes, chego a uma sala ou a um polivalente cheio de crianças (muitas vezes confronto-me com grupos de 100 ou 150 crianças) desconfortavelmente sentadas e a única coisa que faço é olhá-las. Fico ali a olhar para elas, enquanto aguardo que elas se acalmem e reparem em mim. (Nada de inovador, esta será uma das técnicas mais usadas pelos bons professores para obterem a atenção dos seus alunos). Quando finalmente isso acontece, começo a falar baixo e devagar. Sou extremamente sintética e objetiva – é preciso que eles compreendam efetivamente o que venho dar-lhes, para que não “fujam” outra vez – e começo a sessão. Sem tentar qualquer simpatia, sem procurar granjear os seus afetos, nada disso. Apresento-me, informo-os que sou a autora do livro, introduzo o tema, começo a história (pode ser por um exercício de expressão dramática ou de concentração, o que estiver programado no mecanismo teatral que concebi para contar aquela história). Ponho em marcha o jogo da atenção, aquele em que um se propõe a liderar e outro se propõe a segui-lo (a mão aberta à frente do rosto, sendo que, neste caso, eu sou a mão aberta e o rosto que me segue são as crianças). Depois trocamos. Quando é que trocamos? Quando vejo que algum deles sai do curso do imaginário que estamos ali a celebrar. Se isso acontece e eu vejo, interrompo a minha narrativa, aponto a criança e pergunto-lhe:

- Como é que te chamas?

(Os seus olhares intimidados são sempre de uma candura maravilhosa). Depois de uma breve atrapalhação, ele ou ela dizem o nome, o que me permite chamá-lo ou chamá-la e, com um improviso que permita – agora sim – um certo afeto, um certo acolhimento, chamo-os à atenção para a narrativa, esse rio tão lindo que corre veloz e eles estão a perder. Normalmente, uma chamada destas basta para trazer a criança até ao rio maravilhoso da ficção. Até ao fim da sessão, tento manter presente o nome dela, vou chamando-a novamente se a sinto outra vez a fugir, mas, normalmente, isso nem é preciso. Instala-se – agora sim – uma certa simpatia. Tudo é doce, até a chamada de atenção.

Aliás, principalmente a chamada de atenção. Nas oficinas, espaço mais solto na sua estrutura (aí não é tão claro qual é a mão que lidera, uma vez que eles – as crianças – também estão em ação), tenho às vezes que parar e dar uma espécie de berro:

- Como é??!

Eles põem-se todos em sentido, a professora de teatro é agora um general. Eu repito as regras, retomamos o jogo. Nada há de agressivo aqui, pelo contrário. Chamá-los assim é trazê-los para a proposta, dar-lhes atenção, pedir as suas atenções. Na definição de Ananiev, estamos a construir afeto. As crianças entendem isso como ninguém. Aliás, muito melhor do que os adultos, porque elas ainda não têm construído um certo ego que possa ser ferido ou beliscado na chamada de atenção. Nada disso, elas compreendem perfeitamente. Pensarão:

- Estão a chamar-me e querem a minha atenção – então, lá nos seus processadores avançados chamados cérebros, consciente ou inconscientemente, hão de descortinar a razão dessa necessidade. – Espera aí… Porque é que a minha atenção é necessária? Porque é que a minha presença é necessária aqui?... Talvez eu seja importante. Talvez a minha presença importe.

Pois é, a presença importa. A presença de cada um importa e chamar a atenção do outro é o mesmo que dizer-lhe:

- Tu és importante.

Fundamentalmente, é por isso e para isso que me interessa chamar as crianças para a escuta. Gostaria muito que essa mensagem lhes ficasse, depois da breve visita da escritora, atriz ou professora de teatro. Todos importam, cada um é importante. É por isso que não posso acelerar nem abreviar, nem fugir – eu também – ao que vou ali fazer. Não posso; seria uma deslealdade para com aqueles que me ensinaram. Mas, pior, seria uma deslealdade para com as crianças que estão assistir. O teatro pede presença e o olhar de escuta é a ponte que permite essa presença com o outro.

No mundo dos smartphones, essa presença é sistematicamente destruída e substituída por uma ilusão de omnipresença. Até parece que somos capazes de estar em todo o lado ao mesmo tempo. Nós acreditamos mesmo nisso, com um telemóvel na mão, cheio de janelas abertas. Pois bem, desenganemo-nos. Não somos capazes disso. Só temos o aqui e o agora. As mensagens, as publicações, os murais e o vício do scroll matam-nos a capacidade de dar atenção, cortam-nos a ligação ao outro e toldam-nos um olhar que, em vez de ser de escuta, corre o risco de se tornar uma cavidade vazia e sobrecarregada de informação sem significado.

Pedindo desculpa aos professores e educadores que respeitosamente se desligam dos telemóveis, termino este texto com uma chamada de atenção àqueles que ainda não o fazem quando acompanham as sessões de autor, oficinas de expressão dramática ou espetáculos de teatro:

- Por favor, desliguem-se dos telemóveis durante esses momentos.

*

27/7/2025,

Isabel Fernandes Pinto


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