Um corpo – senciente, consciente e narrativo – que constrói conhecimento
- FAUNAS teatro portátil

- 8 de ago.
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“Era bem isso que Jacotot tinha em mente: a maneira pela qual a Escola e a sociedade infinitamente se simbolizam uma à outra, reproduzindo assim indefinidamente o pressuposto desigualitário, em sua própria denegação. (…) A igualdade, ensinava Jacotot, não é nem formal nem real. Ela não consiste nem no ensino uniforme de crianças da república nem na disponibilidade dos produtos de baixo preço nas estantes dos supermercados. A igualdade é fundamental e ausente, ela é atual e intempestiva, sempre dependendo da iniciativa de indivíduos e grupos que, contra o curso natural das coisas, assumem o risco de verificá-la, de inventar as formas, individuais ou coletivas, de sua verificação. Essa lição, ela também, é mais do que nunca atual.”
RANCIÈRE, Jacques – O mestre ignorante. São Paulo : Autêntica, 2024, pp. 15-16.
Na casa da minha infância, havia uma enciclopédia que preenchia três prateleiras do armário de nogueira da sala. A escolha daquela enciclopédia (e não outra) tinha sido cuidada, alvo de reflexão e debate entre os meus pais, que ponderaram a relação entre o seu custo e a qualidade científica antes de investirem. Os volumes eram abertos em vários momentos, tanto para sanar uma dúvida, como para realizar um trabalho escolar. Ninguém dizia que a enciclopédia era inteligente. Podiam qualificá-la como “completa”, “precisa”, “clarificadora”, “sustentada” ou todos os antónimos destes adjetivos, mas ninguém lhe chamava inteligente nem estúpida.
Quando, no ensino secundário, eu estudava para os testes de filosofia, adorava fazer uma coisa (na realidade, era um grande privilégio que eu tinha por ser filha de pessoas que se dedicaram ao estudo como uma causa regida por um valor superior: a busca de conhecimento honesto, clarificador e útil). Recolhia todos os livros que houvesse nas estantes de casa sobre aquele filósofo ou tema, lia, comparava-os entre si, explorava a sustentação de algumas abordagens plasmadas no manual escolar e, finalmente, fazia “os resumos”. Os meus “resumos” – digo isto com uma sensação de orgulho que ainda guardo – eram fotocopiados na escola e distribuídos por quem quisesse, alguns até eram reduzidos a uma escala minúscula que permitisse colá-los às abas de uma camisa (naquela altura as camisas andavam por fora das camisolas de gola alta), na tampa de um estojo, debaixo de uma mesa, onde fosse possível… (Para quê? Ah, para nada… Para ter ali… Para dar sorte nos testes…) Não cabia em mim de orgulho sempre que via os meus resumos serem usados, mas tinha a consciência que, por eu os ter feito, a aprendizagem que fizera no caminho morava em mim e não podia ser fotocopiada. Por isso, sim, ficava muito feliz por receber a gratidão e o reconhecimento dos meus colegas, mas também sabia que ler aqueles “resumos” por si só era pouco, comparando com a alegria de espalhar vários livros abertos em cima da cama e colocar diferentes pontos de vista em confronto, como se fossem as faces de um prisma conformando um dado assunto.
Paro de escrever, pondero o sentido do texto, releio e apercebo-me de uma coisa: usei a palavra “alegria”, nomeei uma emoção para descrever o caminho que realizei na busca de conhecimento. É por aqui que quero seguir. Os resumos não eram “inteligentes”, inteligente era o ser humano curioso que se alegrava em aprender.
No meu tempo, havia quem usasse uns livrinhos pretos e amarelos da Europa-Améria que traziam as obras literárias muito explicadinhas. A imagem desses livrinhos arrepia-me e só o escrever sobre eles dá-me uma certa sensação de repúdio. Nunca entendi como é que alguém prefere ler uma leitura já feita a ler a obra em si. Mesmo que a experiência de a ler nem sempre seja agradável, relegar a apropriação de um entendimento a um outro – ainda por cima não identificado, porque aqueles não eram os resumos de alguém, não tinham autor, antes pretendiam ser “os resumos definitivos e universais” sobre a obra. Como se ler não fosse um ato de liberdade.
Lembro-me que andei a arrastar a leitura de’“Os Maias” durante três meses, penando pelas primeiras cem páginas – estava a odiar, a vomitar Dâmasos, Carlos e Ramalhetes pelos olhos – e depois devorei em três dias as últimas trezentas páginas. Aquilo que começou por ser uma luta, um veneno, um óleo de fígado de bacalhau, acabou por me proporcionar um dos prazeres literários mais intensos da minha juventude. É tão bom quando percebemos que estávamos errados sobre não gostar de uma coisa.
Com tudo isto, quero dizer que ler, pensar, estruturar a informação e aprender é um processo que implica sabor. E o sabor sente-se com o corpo. Nós não aprenderíamos se não tivéssemos corpo. Mas o nosso não é um corpo qualquer, é um corpo narrativo, um corpo cheio de histórias. Foi com o meu corpo, gerado por dois seres que me criaram no seio das suas histórias de vida, que eu abri enciclopédias, fui em busca de livros e abordagens diferentes sobre um mesmo tema e me obriguei a ler um texto sobre senhores do século XIX que viviam num palacete e iam passear à serra de Sintra. Essas leituras fizeram-me sentido porque eu tinha visto, ouvido, provado, cheirado e tocado outras realidades que me permitiam, daquelas letras organizadas em palavras e frases, extrair e fabricar imagens mentais. Essas imagens mentais geraram emoções e abriram caminho à construção de sentimentos. Eu não aprendo apenas porque tenho um cérebro. Não basta imitar o funcionamento do cérebro para se dizer: “estou a fabricar inteligência”.
O que é ou não inteligente tem que continuar a ser definido por aquilo que somos, que é, antes de tudo, um corpo senciente, consciente e narrativo. Nós não aprendemos sem nos relacionarmos com o objeto, a realidade apreendida. Essa relação implica presença física e atenção.
É por isso que a expressão “inteligência artificial” me parece simplesmente absurda. Não que não englobe um conjunto de ferramentas úteis em vários contextos. Mas definir essas ferramentas como “inteligência” é um equívoco. Uma máquina com a qual se tenta imitar o funcionamento de um cérebro (dentro do que se conhece atualmente) não pode chamar-se “inteligente”, porque pretere tudo aquilo de que o cérebro se serve para efetivamente funcionar, processar informação e produzir conhecimento. A máquina não pensa, porque a máquina não tem corpo, não produz sensações, não se relaciona com os outros nem com o contexto, da forma complexa, sensitiva e presente que carateriza o ser humano.
Para além de equivocada, essa expressão pode ser perigosa. Ao anuirmos que a inteligência possa ser uma gigante coleção de informações que, combinadas de determinadas maneiras, produzem sentido adequado a uma dada circunstância, estaremos por ventura a amputar-nos de algo que nos sustenta enquanto animais inteligentes e livres. Onde ficará o ser humano, servido de vontade e perspetiva? Quem aferirá a verdade das informações? Como enquadrar as diversas e divergentes veracidades objetais que a abordagem a determinadas realidades implica? Onde ficará a liberdade de pensamento, se aceitarmos sem resistência que uma máquina produz inteligência mais eficiente do que a nossa? Como continuaremos a sonhar o futuro e a inventar o que ainda não está feito?
Já não estamos no campo da especulação. Ouvimos todos os dias que um determinado programa informático é mil vezes mais eficiente e económico do que os humanos a realizar uma tarefa ou processar informação. É evidente que isto pode ser libertador na gestão do nosso “tempo produtivo”. Mas não pode ser exemplar. Tomar como exemplo de inteligência uma máquina programada para organizar, sintetizar e adequar informações a um dado contexto tem que ser algo assente na premissa de que a máquina é e será sempre radicalmente diferente do humano, é e será sempre um acessório para o nosso “tempo produtivo”. O risco de fazer equivaler o humano à máquina é que é preocupante, porque a chamada “inteligência artificial” exclui aspetos que são essenciais à inteligência humana: o tempo improdutivo e a corporalidade.
Caso deixemos que seja a máquina artificial, com seu imediatismo e sua existência incorpórea, a definir exemplarmente o que é inteligência, cairemos no autoritarismo do instantâneo e da superficialidade. Se deixarmos que esse modelo alastre pelo ensino, criaremos um conjunto de pessoas ausentes da sua capacidade de parar para percecionar e pensar. Uma máquina não pode parar, se o fizer está avariada. Um ser humano pode e deve parar. Parar de pensar para sentir e depois voltar a pensar e depois voltar a sentir. Parar de fazer para olhar e depois voltar a fazer e depois voltar a olhar. Parar de falar para se escutar e depois voltar a falar e depois voltar a escutar. Entre tudo isto, há máquinas facilitadoras. Mas nunca podemos esquecer que o caminho é nosso, é o nosso corpo – senciente, consciente e narrativo – que o faz. É no facto de fazermos o caminho que, como advoga Rancière e Jacotot, reside a igualdade entre nós, seres humanos. Esse princípio de igualdade constrói-nos enquanto indivíduos e gera sociedades fortes, dinâmicas, coesas. É nesse terreno que germina a semente da liberdade.
Termino este texto citando a Professora Anabela, da Escola Básica de Matosinhos. Esta docente do agrupamento de escolas Sophia de Mello Breyner trabalha com metodologia de projeto numa turma mista de 3º e 4º ano de crianças oriundas de um meio carenciado, em que, entre 20 alunos, 14 são alvo de medidas especiais. No entanto, de cada vez que eu entro na sua sala, os alunos estão sempre ocupados e concentrados a trabalhar em pequenos grupos, fazendo maquetes, apresentando máscaras, resolvendo problemas, pesquisando a data das próximas eleições…
“Eu aqui dou mais a liberdade do que a tabuada. A tabuada, eles fazem na calculadora. A liberdade, eles não aprendem em mais lado nenhum.”
Prof. Anabela, EB de Matosinhos, 6/junho/2025
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8-8-2025, Isabel Fernandes Pinto





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