top of page

Brincar ao Faz de Conta

  • Foto do escritor: FAUNAS teatro portátil
    FAUNAS teatro portátil
  • 3 de ago.
  • 5 min de leitura

“A pulsão conhecida como «play», que inclui as ideias de recreio, brincadeira, jogo e invenção, é proeminente nos mamíferos e nas aves e é central na vida humana”.

DAMÁSIO, António – A estranha ordem das coisas. Lisboa: Temas e Debates – Círculo de Leitores, 2017, p. 164.

 

"Faz de Conta que é um OVNI" - Projeto "O Vazio Criativo", JI da Aguda, AE Sophia de Mello Breyner, ano letivo 2024/25.
"Faz de Conta que é um OVNI" - Projeto "O Vazio Criativo", JI da Aguda, AE Sophia de Mello Breyner, ano letivo 2024/25.

Quando entrei pela primeira vez numa sala de jardim-de-infância para realizar uma oficina enquadrada no projeto “O vazio criativo”, eram quase 9 horas da manhã. A educadora titular da turma e a auxiliar de ação educativa acolhiam afetuosamente as crianças que iam chegando. Já tínhamos libertado o espaço da sala e eu arrumara as minhas coisas num canto. Verifiquei o funcionamento da coluna de som, preparei a música no primeiro tema para um dos exercícios, abri o documento com os apontamentos da metodologia que pretendia aplicar, reli-o diagonalmente e olhei o grupo. Estavam a sentar-se no tapete e a dar os bons-dias. Tratava-se de crianças de 4 e 5 anos, um grupo misto, talvez já houvesse alguns de 6 anos. Automaticamente, corrigi o primeiro ponto da metodologia, que dizia: “Fazer uma roda com as crianças no centro da sala”. Não podia ser, havia algo de errado naquela indicação. No abstrato estaria certíssimo, mas, naquela realidade concreta, no acontecimento que eu estava ali a presenciar, o pensamento que me veio à cabeça foi este:

- Preciso de pedir licença às crianças. Este é o espaço delas, preciso de as respeitar enquanto protagonistas deste lugar que é a sua sala.

Assim fiz. Em vez de anunciar “o início da atividade” como se fosse o arauto de uma coisa nova e desgarrada da realidade daquelas crianças, iniciei a oficina de uma maneira menos impositiva. Procurei incluir-me no grupo e conhecê-las um pouco, esperando desenvolver algo que já lhes pertencia: a prática do Faz de Conta. Fez-me todo o sentido, ali, que aquela oficina de expressão dramática que eu tinha preparado se iniciasse por um exercício de desenvolvimento do potencial de uma prática que já lhes era familiar.

Fui então ter com eles, e, respeitosamente (como faria com qualquer assembleia de adultos), pedi licença para me juntar ao grupo. Apresentei-me (disse o nome e o que estava ali a fazer) e perguntei se podia sentar-me no tapete. Olharam-me sorridentes e disseram que sim. Sentei-me, saboreei a agradável sensação de estar numa roda em conjunto com eles e então partilhei um pensamento:

- Sabem que é muito especial estarmos sentados assim em roda, porque cada um, de onde está, pode olhar nos olhos de todos os colegas.

Foi o que fizemos, em silêncio. Olhamos nos olhos de todos os colegas.

- Se um colega não estiver a olhar para nós, esperamos que ele nos olhe. Tentem olhar mesmo nos olhos de todos os colegas.

O momento tornou-se precioso. O silêncio não era quebrado. Apenas alguns sorrisos de um certo espanto ou cumplicidade. Era como se, depois da agitação das chegadas e preparação da sala, tivéssemos a oportunidade de respirar em conjunto.

Quando terminamos, propus que jogássemos ao Faz de Conta, com três regras: 1) eu dizia de que é que iríamos fazer de conta; 2) se dissesse “stop” tínhamos que congelar; 3) se batesse duas palmas deixávamos de fazer de conta e voltávamos a sentar-nos. Então, no vibrante entusiasmo contido que só as crianças sabem ter, fomos brincando a ser leões, serpentes, gatos, cães, sapos, girafas, tubarões… Integrei algumas sugestões deles e quando, em alguns casos, eu própria não sabia muito bem como representar o animal, perguntava-lhes e elas tinham sempre alguma proposta. Permiti-me experimentar com eles e diverti-me muito também. Ficamos ali um bom tempo a imitar animais. Então, sem que fosse necessário quebrar a fluidez da sessão (“agora levantem-se”) demos connosco já de pé, prontos para fazer a “dança das articulações”, que era o jogo seguinte, no plano que eu trazia gizado.

Falarei das restantes propostas desta oficina noutra ocasião. Neste texto, pretendo deter-me neste jogo do Faz de Conta. Porque é que ele é tão evidente para as crianças? Para que é que serve?

Sabemos que aprender por imitação – a aprendizagem social – é essencial para as crianças. Mas, para além do óbvio divertimento, de que serve aprender como faz uma girafa? Ou um leão?

Há um primeiro aspeto: cada um dos animais traz a sensação de um determinado comportamento, muitas vezes associado a uma emotividade. Imitar o rugido do leão pode evocar sensações de empoderamento; ao fazer deslizar o braço e a mão no chão como uma serpente podemos ensaiar momentos de suspense e mistério; tentar igualar o olhar de um peixe traz-nos uma sensação de impassibilidade; fazer os movimentos de um macaco evoca agilidade e diversão… Estamos a tomar contacto com sensações físicas e emoções que expandem o conhecimento do que “podemos ser”, para além dos nossos comportamentos habituais e, então, estamos a cumprir um dos desígnios principais daquilo a que chamamos “expressão dramática”: expandir o conhecimento profundo e concreto do que somos e dos nossos comportamentos, enquanto seres humanos. Os animais são ótimos para isso porque nos libertam dos movimentos quotidianos e nos oferecem imagens e dinâmicas muito concretas, que podemos materializar com o nosso corpo facilmente.

Mas há um outro aspeto. O Faz de Conta implica sempre uma síntese do que conhecemos daquela realidade (deste caso o animal). Um passarinho pode ser uma mão-asa a abanar; um tubarão pode ser um cotovelo-focinho a seguir lentamente pela água; um peixe pode ser um olhar impávido e uma boca a abrir e a fechar… Há uns tempos, quando brincava com a minha filha de 5 anos, reparei como ela desenhava animais selvagens. Ela parava um bocadinho, pensava nas caraterísticas fundamentais do bicho e todo o seu desenho era em torno desse conhecimento. Ela sintetizava o traço naquilo que ela sabia que distinguia aquele animal da restante realidade. A girafa era pouco mais que um pescoço. O crocodilo era pouco mais que uma bocarra cheia de dentes. O leão era pouco mais que uma juba. Lembro-me de olhar aqueles desenhos e pensar:

- Parecem hieróglifos. Como se, na sua infância, a humanidade começasse por escrever assim.

Evocando essa memória, tudo se clarificou. Aquele jogo de Faz de Conta baseado na imitação dos animais conduz a criança a traduzir a realidade em signo. O gesto corporal é signo, tal como uma letra ou uma palavra. Nesse processo, a criança integra um dos elementos fundamentais da comunicação. Ela pode criar um alfabeto de animais através da gestualidade e do corpo. Para além de lúdico e de envolver várias competências motoras, através desse jogo a criança integra o elemento fundamental da comunicação: a criação do signo. Ela não apenas o recebe, não apenas o reproduz. Ela cria o signo. Tal como a humanidade o criou, na alvorada da civilização. É como se a trouxéssemos até um momento fundador da história: a criação da escrita.

Fazer de conta não é apenas divertido, não se trata apenas de um exercício de coordenação motora e imaginação. Fazer de conta é criar signo, tomar parte no processo essencial que origina e possibilita a comunicação humana. Talvez seja por isso que é espontâneo e que todas as crianças do fazem, se tiverem tempo e espaço de liberdade para brincar.

**

3/8/2025,

Isabel Fernandes Pinto

1 comentário


Convidado:
03 de ago.

Uma narrativa que mos transporta para a sala de aula de uma turma de crianças com 4 e 5 anos, com uma descrição objectiva da interacção no jogo do "faz de conta", com enorme respeito pelas crianças e com uma reflexão pós-ação muito útil para os agentes educativos. Obrigada, Isabel, por nos proporcionares este conhecimento.

Curtir
bottom of page