Inquestionavelmente essencial*
- FAUNAS teatro portátil
- 22 de jul.
- 7 min de leitura
Atualizado: 25 de jul.
*Texto redigido em 2020, integrado no trabalho de natureza profissional para atribuição do título de especialista na área de Teatro – Artes do Espetáculo, pela ESMAE-IPP, com resultado de Aprovado.

Em 2005, escrevi um texto, construí um cenário, treinei o meu corpo e a minha voz, decorei o texto, ensaiei uma partitura de ações, desmontei o encosto de banco traseiro de um Citroën AX, carreguei-o com o cenário e, com um colega músico (o Allen, um percussionista e construtor de instrumentos musicais), fui a um colégio apresentar a primeira peça de teatro do Projeto Faunas. Foi o primeiro passo num percurso de criação, aprendizagem e descoberta, que me trouxe até aqui. Eu era a única atriz, sozinha num palco que não existia, mas o que eu fazia não era bem um monólogo nem era bem uma sessão de contador de histórias. Atrevo-me a dizer que seria teatro, por compor a perceção de uma realidade imaginada, num determinado espaço e em presença de público.
O nosso “slogan”, desde o início, foi este: “Levamos a imaginação aonde ela é precisa”. Mas só recentemente compreendi o alcance desta afirmação, nas palavras de Yuval Noah Harari:
«Uma realidade imaginada não é uma mentira. Eu minto quando digo que está um leão junto ao rio e sei perfeitamente que não está lá qualquer leão. Não há nada de especial em relação às mentiras. Os cercopitecos e os chimpanzés conseguem mentir. Por exemplo, já foi visto um cercopiteco gritar “Cuidado! Um leão!!” sem que houvesse nenhum leão por perto. O sinal de alarme assustou, convenientemente, outro macaco que tinha acabado de encontrar uma banana, deixando o mentiroso sozinho para poder ficar com o prémio para si.
Ao contrário da mentira, uma realidade imaginada é algo em que todos acreditam e, enquanto essa crença coletiva persistir, a realidade imaginada exerce força sobre o mundo.”
HARARI, Yuval Noah – Sapiens – História Breve da Humanidade. Amadora, Editora 20|20, 2017 (obra original publicada em 2011), p. 47.
No decorrer do livro, Harari demonstra como a capacidade de criarmos ficções e as partilharmos permite a cooperação humana e organiza toda a nossa existência em sociedade. Na sua perspetiva, “realidades imaginadas” são todas as criações humanas, desde as fronteiras dos países ao cunhar de moeda, passando pelos direitos humanos e as leis. No entanto, imersos nessas realidades que imaginamos coletivamente, deixamos de as poder ver, examinar e, muitas vezes, torna-se difícil reinventá-las para resolvermos os problemas que se geram dentro delas. É aí que o teatro entra como um maravilhoso e inteligente exercício de conceção, concretização e vivência de uma realidade imaginada. Como fica circunscrita a um espaço e a um tempo, essa realidade teatral pode tornar-se um objeto de discussão, de reflexão, de reinvenção que fazemos sobre nós próprios e as nossas vidas em comum. Em vez de estarmos imersos na ficção que criamos – como Harari diz que estamos, na nossa vida quotidiana e social – colocando-nos conscientemente fora dela, podemos olhá-la. Teatro implica a conceção sob um ponto de vista, é o “lugar de onde se vê”, na origem grega da palavra. Haverá instrumento mais eficaz para nos conhecermos a nós próprios?
Por outro lado, Harari foca a capacidade de criar realidades imaginadas como algo que nos distingue dos animais irracionais. Enquanto a mentira, que ele refere como um mecanismo que um macaco consegue pôr em prática, está ao serviço da prossecução de uma pulsão tão básica como a procura de alimento, a realidade imaginada pelos seres humanos distancia-os dessa satisfação meramente biológica. Nós somos capazes de inventar palavras e de lutar por elas, mesmo que para isso tenhamos que colocar as nossas pulsões mais básicas em causa; os macacos não têm essa capacidade. O que é que mais nos importa? O que é que nos define enquanto humanos? Estamos sempre a colocar essas perguntas quando criamos uma ficção. Estamos sempre a ensaiar possíveis respostas quando criamos uma ficção. E nunca criamos do vazio, mas sim do olhar que somos capazes de lançar ao mundo. Na Grécia, onde nasceu a palavra “théatron”, os teatros eram construídos aproveitando o acidentado relevo, nas encostas dos montes. Por trás da “skene” (cena, o palco), a vista era imensa. Em Atenas, da Acrópole onde se situava o teatro, via-se a pólis (cidade-estado) lá em baixo e, ao fundo, o Porto de Pireu, porta para o Mediterrâneo, que era o mundo conhecido dos Gregos. Todos os textos dramáticos da Antiguidade Grega que chegaram até nós refletem os diferentes olhares sobre essa pólis e esse mundo, lançam perguntas, ensaiam respostas, interpelam o real.
A nós, humanos, não nos basta sobreviver, precisamos de construir sentido. Essa é uma necessidade que nos é vital, não deriva de um caráter inconformista nem é capricho de alguns. A construção de sentido é algo que cada um de nós faz, inevitavelmente, com os instrumentos de que dispõe, na circunstância em que está. Mas essa construção de sentido também acontece na nossa consciência, num processo que António Damásio equipara ao fenómeno teatral:
«No teatro da nossa mente – o nosso Teatro Cartesiano, porque não – o pano subiu, os atores estão no palco, a falar e a andar, e não falta a parte crítica desta situação: existe um público: EU.»
DAMÁSIO, António – A estranha ordem das coisas. Lisboa, Círculo de Leitores, 2017, pp. 204-205.
Fazer teatro, representar, é, assim, essencial nas nossas vidas. Não apenas no plano mental, Damásio refere também o jogo como pulsão essencial:
«A pulsão conhecida como “play”, que inclui as ideias de recreio, brincadeira, jogo e invenção, é proeminente nos mamíferos e nas aves e é central na vida humana.»
DAMÁSIO, António – A estranha ordem das coisas. Lisboa, Círculo de Leitores, 2017, p. 164.
Se associarmos a pulsão, definida por Damásio, como “play” à capacidade de “criar realidades imaginadas”, definida por Harari, entendemos como este exercício tem duas vertentes: é essencial à nossa existência inteligente no plano individual, pois cada indivíduo mapeia o mundo na sua mente, construindo leituras, entendimentos, narrativas da realidade; é o impulso coletivo que nos conduz na conceção, construção e organização do mundo tal como o conhecemos. Damásio defende ainda que esse exercício é suportado por aquilo a que se chama “homeostasia”, o processo de regulação de um organismo vivo segundo o qual este procura persistir na sua existência e prevalecer sobre o ambiente onde que se encontra.
«No caso dos seres humanos, as experiências mentais foram alavancas diretas para a construção deliberada de culturas: as experiências mentais de dor, sofrimento e prazer tornaram-se alicerces dos desejos humanos, pontos de partida para as invenções humanas, num contraste acentuado com os comportamentos acumulados até então pela atividade de seleção natural e da transmissão genética. O fosso entre os dois conjuntos de processos – evolução biológica e evolução cultural – é de tal modo profundo que nos faz esquecer o facto de que a homeostasia é a força dos detrás de ambos.»
DAMÁSIO, António – A estranha ordem das coisas. Lisboa, Círculo de Leitores, 2017, p. 221.
O que Damásio refere como “contraste acentuado com os comportamentos acumulados até então pela atividade de seleção natural e da transmissão genética” é, afinal, o que nos distingue dos outros animais e nos confirma aquela suspeita que tínhamos: Sim, a produção de cultura é uma atividade essencial para os seres humanos.
Vejo o teatro como o lugar de confluência de muitas expressões artísticas, uma espécie de praça da humanidade, para onde fluem tantos e tantos caminhos que percorremos, dentro de nós e entre nós. Fazendo teatro a dois ou três metros do público, sem iluminação cénica nem o distanciamento físico do palco, são vários os olhares do público que guardo na memória. Lembro-me de uma criança com cerca de quatro anos que esteve durante todo o tempo de apresentação de “O melro e a pomba amarela” a segurar a lágrimas, lutando contra o medo que sentia enquanto não desprendia o olhar da cena; lembro-me de uma criança com cerca de seis anos me perguntar “Olha, tu és mágica?” depois de ter estado continuamente em suspenso durante a apresentação da peça; lembro-me de uma criança com cerca de 4 anos me dizer “esta história era um bocadinho aguçada”; lembro-me de um rapaz de uns oito anos muito revoltado vir ter comigo no final e dizer “eu não gostei nada, não tinha piada nenhuma”; lembro-me de muitos adultos com lágrimas nos olhos, durante as apresentações de “Fiandeira” e “Nascer”; lembro-me de um rapaz me vir dizer, com muito orgulho, um ano depois da apresentação da peça “Sabes, e eu fui o melro!”; lembro-me de uma senhora idosa me vir dizer “sabe, menina, aquele elefante era eu, a menina contou a minha história”; recordo a longa conversa que tive com uma professora, depois de “A história do pescador…” sobre o papel da mulher naquela narrativa; relembro, sempre arrepiada, de nos dizerem ao telefone “por favor, venham cá, muitos destes meninos nunca viram teatro”. Não tenho dúvidas de que o teatro é um instrumento profundamente humano e político, que nos pode revolucionar por dentro. Acredito que a nossa missão enquanto profissionais do teatro é esta: tocar e ser tocado, dar passagem a quanto existe de humano, fazer acontecer o jogo da imaginação.
Não é por acaso que cito um historiador e um cientista neste breve texto introdutório. No momento presente, este ano de 2020 assolado por uma pandemia, inquieta-me muito a menorização que uma certa opinião pública e alguns decisores políticos tentam fazer do trabalho dos artistas e do papel das artes, na nossa sociedade. Não curamos ninguém, os nossos resultados não são necessariamente quantificáveis, não produzimos objetos utilitários. Porém, a história e a ciência dizem-nos que conceber e concretizar realidades imaginadas, representar ou fazer teatro, define-nos enquanto seres humanos. Eis, então, um desígnio para este trabalho. Que o percurso que vou trilhando, este ofício que procuro fazer evoluir, as minhas reflexões, aprendizagens e partilhas, possam contribuir para um gesto imenso e forte que é necessário fazer em coletivo: colocar a Cultura no lugar que lhe pertence, entre várias atividades humanas: Inquestionavelmente Essencial.
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2020, Isabel Fernandes Pinto
Um trabalho maravilhoso de encanto, beleza, muito estudo e pesquisa para dar o melhor às crianças. Parabéns pelo sentido de responsabilidade que revela em todos os seus textos e intervenções em sala de aula.