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  • Foto do escritorFAUNAS teatro portátil

Esplanadas e Impérios


No penúltimo dia do nosso turismo por Malta, fomos, finalmente, visitar a capital: Valeta. Deixamos o carro alugado num parque em Floriana, e seguimos para a porta da cidade. Reparei numa grande escultura feminina (ao jeito da “Liberdade guiando o povo”, de Delacroix) de enaltecimento à independência de Malta (em 1964) e noutra, que a confrontava, e representava Jesus Cristo. Independência sim, mas… enfim, vocês sabem de que lado estão. A laicização do Estado é muito bonita e interessante se não estiveres numa ilha do Mediterrâneo sujeita à contaminação de outras religiões, nomeadamente o islão (já basta o maltês ser uma língua parente do árabe), ou seja, se não estiveres em risco de te tornares um ativo de outros impérios. Caso estejas nessa situação e apesar de te enquadrares no rótulo de “Democracia Ocidental”, o estado laico já não será assim uma condição tão essencial para a democracia. Por isso, o facto de Malta ser um Estado Católico (inscrito como tal na sua Constituição) não é algo que ponha em causa a liberdade religiosa inscrita nos direitos humanos. Eis uma contradição ocidental.

Outra contradição ocidental: O forte de Santo Elmo foi construído no século XVI, no extremo marítimo da península agora ocupada por Valeta, pela Ordem dos Cavaleiros de São João, para assegurar o controlo católico daquele porto e do país. Durante o Grande Cerco que o Império Otomano fez, em 1565, a que os católicos resistiram com muito sangue, suor e lágrimas, o exército otomano estabeleceu-se no planalto sobre o mar contíguo ao forte, exatamente a área que hoje é ocupada por Valeta. Ora, quando o cerco findou e os católicos venceram, uma das primeiras resoluções que tomaram foi a de construir um burgo fortificado na mesma zona que fora ocupada pelos otomanos, para assegurar a defesa terrestre do Forte de Santo Elmo. Deram-lhe o nome de Valeta em honra ao grão-mestre Jean-Parisot de La Valete, que comandou a resistência da ordem católica contra o Império Otomano e assim, triunfante e alegremente, colocaram um burgo (cheio de civis) a proteger um forte (cheio de militares). Sobre o “uso de civis como escudos humanos” tão condenado e efetivamente condenável por ser uma técnica bárbara, incivilizada e selvagem, estamos conversados.

Acontece que o “Ocidente” é, também, um império e, como todos os impérios, tem contradições e vícios. Se é um império melhor do que os outros porque diz que inventou os direitos humanos e a democracia? Não faço ideia. A verdade é que, quando o império, que se define exatamente por ser hegemónico e totalitário (e o “império ocidental” exerce esse totalitarismo, talvez não aparentemente sobre os seus cidadãos, mas sobre os outros, sobre “o resto do mundo”) enfrenta algum risco que ameace a sua estabilidade, as primeiras coisas de que abdica (ou faz “vista grossa”) são exatamente os direitos humanos e a democracia. Logo a seguir, se for preciso, abdica-se da paz e depois… Depois serão os próprios cidadãos do império a sentir na pele a opressão que, enquanto o império era estável, era dirigida apenas aos outros, aos “excomungados” da sorte que haviam nascido fora do bloco imperial. Esses eram os que trabalhavam a baixo custo, forneciam matérias-primas e deixavam que se explorassem todos os recursos necessários ao estável funcionamento do império, nas suas intrincadas mecânicas económicas, financeiras e sociais. Daí que, quando “o resto do mundo” explorado por esse império começa a negar-se a essa exploração e a estabelecer regras que o colocam em situação mais próxima de uma paridade com a entidade que, até agora, estava numa situação claramente preponderante, o império trema, vacile e comece a fissurar.

Alguma vez existiu um império sem colonização? Não me parece que um faça sentido sem o outro. O ato colonizador é a força de qualquer império, mas é também a sua maior fraqueza, pela violência que implica, pela revolta que semeia. A extrema-direita atual, de uma forma cruel mas terrivelmente eficaz, tem consciência desta relação e daí nascem todos os ódios aos emigrantes, todos os nacionalismos, todos os “make us great again”, toda a justificação de atrocidades que, em clareza de espírito, não podemos justificar. Essa extrema-direita que se diz “antissistema” não está, de modo nenhum, contra o império que a gerou, pelo contrário, ela é o sintoma politicamente mais nítido do declínio desse mesmo império, ela é o “sistema” na sua versão mais violenta e mais torpe. A questão – enorme desafio de esperança para o futuro – parece ser esta: Seremos capazes de criar uma lógica alternativa ao sistema imperial, onde funcione uma efetiva coabitação de civilizações, culturas e poderes? Por outras palavras: Seremos capazes de inventar uma política que não implique o ato colonizador nem a acumulação ilimitada de poder?

Agora olho para toda aquela gente sentada nas esplanadas de Valeta, no mesmo local onde os otomanos assentaram arraiais para atacar os cristãos do Forte Santo Elmo, e a única coisa que me ocorre é que é precisamente essa nossa sonolência empanturrada, comendo e bebendo numa happy hour contínua, que constitui o maior obstáculo à concretização de algumas palavras que proferimos correntemente, alheios para o que elas nos exigem enquanto ação comprometida. A nossa inércia esvazia as nossas palavras. A nossa voragem ameaça o que dizemos que queremos ser. Quem somos, afinal?

É preciso entendermos o óbvio. Se uma considerável fatia da população europeia está ociosa e se senta numa mesa devorando frutos exóticos, legumes, bifes, peixes, crustáceos, especiarias, farinhas, roupas, peluches, bugigangas, álcool e tudo, tudo, tudo, sempre sequiosa de novidade, sôfrega de coisas, experiências e sensações, eternamente insatisfeita porque cada coisa cai no saco sem fundo em que se tornou o seu interior, preenchido de nada, é preciso entendermos que, se nos sentarmos a essa mesa, estamos a tracionar o mecanismo colonizador do império, que extingue recursos naturais, provoca guerras e oprime homens e mulheres pobres. Esses homens e mulheres pobres que nasceram desafortunadamente do lado de lá dos nossos muros imperiais. Alguns deles vivem nos nossos países. A alguns deles, vemo-los todos os dias. Estão cada vez mais perto e é preciso entendermos que nós, frágeis como afinal sempre fomos, estamos cada vez mais próximos da sua condição de oprimidos e humilhados.

Depois de secar tudo à volta, a opressão do império poderá voltar-se para dentro. O que faremos se assim acontecer? Será a civilização ocidental capaz de se reconfigurar no sentido de modelos políticos claramente distinto dos vícios e contradições imperiais? Como? Seremos nós capazes de viver fora de uma lógica imperial num mundo dominado por eles, os impérios (ou as potências, ou os blocos)? Como? Com que segurança?

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novembro/2023

Isabel Fernandes Pinto

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