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Mostrar o que se é

  • Foto do escritor: FAUNAS teatro portátil
    FAUNAS teatro portátil
  • 20 de jul.
  • 4 min de leitura

Trabalho livre de expressão plástica e escrita criativa, individual, realizado na EB1 de Boavista, 4º ano, ano letivo 2024/25, na primeira oficina de expressão dramática realizada no âmbito do projeto “O vazio criativo”.
Trabalho livre de expressão plástica e escrita criativa, individual, realizado na EB1 de Boavista, 4º ano, ano letivo 2024/25, na primeira oficina de expressão dramática realizada no âmbito do projeto “O vazio criativo”.

“Expressar é mostrar aquilo que se é” – disse Leonor, aluna de 4º ano (ano letivo 2024/25) da Escola Básica da Boavista do Agrupamento de Escolas de Sophia de Mello Breyner, em contexto de conversa com a turma no final da primeira oficina de expressão dramática realizada no âmbito do projeto “O vazio criativo”.

A menina de 10 anos não podia ser mais esclarecedora. O conceito assim entendido afasta-nos dos artifícios a que a palavra “Expressão” está demasiadas vezes ligada, pelos usos e abusos que se fazem dela. Expressão não tem a ver com contrações dos músculos faciais, não tem a ver com volume de voz nem com uma composição visual mais ou menos impactante. A Expressão não se mede nem se compara quantitativamente, a Expressão define-se. Essa definição, esse “desenho” consiste na concretização (trazer para o concreto) “daquilo que se é” (o ser como ideia, entidade abstrata). Isto, claro, independentemente do suporte, recurso ou material utilizado: expressar é mostrar o que se é.

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Está a menina a dizer que existe aquilo que “é” e que existe um processo de o “mostrar”, a que se chama "expressão”. Ela separa os dois mundos: o das ideias (“aquilo que se é”) e o do concreto (onde é possível “mostrar”). A partir do concreto que a expressão oferece – neste caso, o jogo dramático – a menina de dez anos elabora um conceito. Diz-nos “isto mostra o que eu sou”.

Saberá esta menina aquilo que tantos adultos, filósofos e pensadores, passam uma vida sem compreender plenamente? Ela sabe uma coisa – que partilha com os filósofos e pensadores – a Leonor sabe que vale a pena colocar a pergunta. Quem sou eu?

“Conhece-te a ti mesmo” – terá sido gravado no Templo de Apolo, em Delfos. A expressão será talvez o meio privilegiado para nos conhecermos a nós próprios e concretizarmos essa ideia abstrata de “eu”. Mas… para quê? Na Escola, precisamente no sítio onde vamos aprender sobre o mundo, esse mundo vasto que está para lá da nossa pequenez, fará sentido questionarmos quem somos?

Cremos que sim. Revelando quem somos, iniciando esse caminho de conhecimento sobre nós próprios, colocamo-nos no lugar de objeto de estudo. Desdobramo-nos. De repente, a curiosidade abre-se para o mundo e também para nós próprios. Nesse gesto, estamos a incluirmo-nos na realidade conhecida. Eu já não sou apenas sujeito. Eu sou também objeto e, entendendo-me como objeto de conhecimento, em paralelo com a geografia, o corpo humano, a matemática, a gramática e a história de Portugal, eu entendo-me como elemento integrante da realidade. Eu deixo de estar ausente. Integrando-me na realidade que estudo, começo a elaborar vínculos com aquilo que aprendo. O conhecimento torna-se um processo de construção de sentido entre o “eu” e as múltiplas facetas do mundo.

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Lévi-Strauss dizia que “cada um de nós é uma espécie de encruzilhada onde acontecem coisas”*. Ele considerava que o conceito de identidade não era relevante enquanto definição de um objeto acabado, mas enquanto terreno vago, espaço de confluências e atravessamentos.

É precisamente aí que as Expressões fazem sentido. “Mostrar o que se é” não é um processo estanque. “Mostrar o que se é” é um processo condicional, dinâmico, mutável, evolutivo. É preciso que as propostas integradas nas Expressões (dramática, plástica, de escrita criativa ou outras) tenham por base esta premissa, de forma a organizarem um trajeto coerente que conduza o aluno pelo caminho da curiosidade e do espanto.

Existe uma resposta para a pergunta: O que és? Sou humano. “Ser-se humano” implica rever-se, questionar-se, procurar compreender a realidade e buscar posicionamentos no mundo. Como a humanidade que existe em cada um de nós é inesgotável, “mostrar o que se é” pode e deve ser sempre novo. Então, mais uma vez, as Expressões conferem sentido à aprendizagem, como processos de construção de caminhos para a realidade, a partir de um território chamado “eu”.

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Significa isto que, na hipótese absurda de não haver lugar à expressão, na escola, o aluno seria forçosamente atirado para fora do próprio conhecimento, entendendo-se como exterior àquilo que aprende, vedado ao conjunto da realidade conhecida e aprendida, sem possibilidade concreta de se integrar nela. Uma escola que pouco ou nada promove as Expressões é uma escola que sonega ao aluno uma ferramenta fundamental para este construir sentido no seu processo de aquisição de conhecimento.

As Expressões, quaisquer que sejam, desde que bem entendidas – constituindo-se como processos e ferramentas de suporte à definição concreta de pensamento, recusando a simples reprodução de modelos – devem ser vitais e estruturantes do corpo curricular, precisamente porque são estas que tornam o aluno ator da realidade, capaz de olhar, escutar, interagir e compreender as várias componentes que constituem os conteúdos curriculares.

Numa Escola fundada nas Expressões, talvez não fosse preciso lecionar no sentido expositivo. O trabalho de “mostrar o que se é” desenvolver-se-ia, no aluno, enquanto reconhecimento de si próprio como território, integrado na realidade e pronto a ser nutrido e cultivado. Em vez da transmissão de conhecimento, o professor seria um conselheiro na aquisição de sacholas, arados, tratores, sementes ou outras tecnologias que capacitassem a criança para a plantação do seu terreno, reconhecido em si através do trabalho feito nas Expressões. Numa Escola assim, o professor seria, fundamentalmente, um facilitador de cultivos.

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junho-julho/2025

Isabel Fernandes Pinto


*LÉVI-STRAUSS, Claude – Mito e significado. Lisboa: Edições 70, 2007, p.14.

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