Fiquei espantada pela forma profunda como a “Eneida”, de Virgílio (tradução de Carlos Ascenso Simões, edição da Cotovia, 2020) me comoveu enquanto leitora. É tão bom quando um livro nos assalta, nos encharca, nos submerge. Fiquei a perguntar-me porquê. Entretanto, tenho lido muito, a braços com este projeto imenso onde procuramos mergulhar nos direitos humanos. Fui ter à Hannah Arendt e ao seu “As origens do totalitarismo”. Comecei pelo último capítulo: “Ideologia e terror” e, pelos outros capítulos dispersos, que fui consultando, passei por Himmler e o regime nazi. Num discurso em Posen, Himmler diz isto:
“A maior parte de vós deve saber qual o aspeto de cem cadáveres estendidos lado a lado, ou de quinhentos, ou até mil. Ter abatido essa gente toda de uma só vez (pondo de parte as exceções motivadas pela fraqueza humana) e mantermo
-nos pessoas decentes foi isso que nos fortaleceu.”
E então percebi uma coisa: O herói Eneias (não me interessa se é ficcional posto que é criação humana, Himmler também se torna ficcionado como memória que é) entra em contradição com o que tem a fazer através dos sentimentos. Ele sente piedade, sente remorso, sente paixão, sente tristeza, sente angústia, sente revolta e raiva quando faz as atrocidades que tem que fazer por uma ideia (no caso, conquistar o território onde será fundada Roma). Himmler não sente. Pelo contrário, justifica as atrocidades que comete com uma imagem de si próprio e dos seus como “pessoas decentes” mais fortalecidas (imagem absolutamente hedionda). No limite, ele experimentou náusea quando viu as primeiras chacinas, mas de sentimentos não há notícia. Ele diz que a experi
ência “nos fortaleceu”. Fortaleceu-os porque lhes retirou as fraquezas. E onde moram essas “fraquezas” humanas? Nos sentimentos. Himmler conduziu o bulldozer da sua ideologia sem qualquer dificuldade, porque não tinha nenhum sentimento para o impedir.
São os sentimentos que nos definem as linhas vermelhas, aquelas que não queremos atravessar. Porque a ideologia pode tornar-se um bulldozer com que podemos arrasar tudo, se estivermos desprovidos de sentimentos, se estivermos verdadeiramente sós – sem a projeção dos outros em nós, nem nos projetarmos nos outros. São os sentimentos que nos põe em contradição e é dessa contradição (e isto é basilar tanto para as leis da física como para o trabalho do ator) que surge a ação, o movimento. Nunca tinha pensado que uma ideologia pode ser perigosa se levada até e
sse ponto e nunca tinha percebido que está na nossa capacidade de sentir a possibilidade de a travarmos. Isto assim dito parece muito simples, mas a realidade mostra-nos que a sua concretização não é assim tão evidente. Há um equilíbrio delicado entre o mundo das ideias, onde se criam as ideologias e também onde geramos os nossos sonhos e motivações individuais, e o mundo dos sentimentos, que provém do co
ntacto direto com os outros, da nossa disponibilidade física e psíquica, do conhecimento honesto e inteiro que damos e recebemos. Num momento em que tanto nos isolamos, talvez faça sentido pensar nestas coisas.
Isabel Fernandes Pinto, 16/abril/2021
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