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Sobre proporcionalidade


“Eu sou o governador guardião... Em meu seio trago o povo das terras de Sumer e Acad;... em minha sabedoria eu os refreio, para que o forte não oprima o fraco e para que seja feita justiça à viúva e ao órfão” – Hamurabi, Código Hamurabi, Epílogo, séc. XVIII a.C.*.


“A morte é um castigo demasiado injusto e mesmo prejudicial para o bem comum. É uma punição demasiado cruel para castigar o simples roubo e contudo insuficiente para o impedir” – Thomas More, Utopia, séc. XVI**.


Se no séc. XVIII a. C., na Mesopotâmia, o rei Hamurabi instituía a “lei de talião” para que os fortes não oprimissem os fracos, evitando, na punição dos crimes, uma violência desproporcional; em 1516, Thomas More descrevia, na primeira parte do livro que ficou conhecido como “Utopia”, a pena de morte aplicada a ladrões como uma punição desproporcional e injusta usada para punir aqueles que, por necessidade, furtam bens. Os mais de 3000 anos que separam os dois textos encolhem-se, tocando-se os seus autores na mesma preocupação: a proporcionalidade entre punição e crime.

Entre ambos, várias civilizações nasceram e morreram, e, com elas, muitos sábios, muitos filósofos, muitos soberanos, muitos ditadores, muitos homens e mulheres. A mistificação da justiça é-nos evidente quando pensamos, por exemplo, na Maat egípcia que pesa o coração dos humanos contra uma pena de avestruz para avaliar a culpa das ações perpetradas em vida: caso o coração do morto estivesse mais pesado que a pena de Maat, este não mereceria a vida eterna; caso estivesse mais leve, ele daria entrada no mundo dos mortos. Também aqui, a proporcionalidade. Mas a proporcionalidade da consciência individual: a sua alma não podia ser pesada, teria que ser leve como a pena de Maat; a culpa do indivíduo tirar-lhe-ia a recompensa da vida eterna. Isto transportou-se para a religião dos hebreus, como se sabe. Havia neste misticismo o entendimento de que o ser humano é provido de consciência e, por isso, capaz de se guiar pelos bons princípios. Não se estava a falar do todo, da cidade, a não ser que entendamos que falar de cada tijolo é, também, falar da cidade. É-o, de facto. Podemos, devemos, ver a questão a várias escalas. Contudo, a escala de um país ou de um império precisa da palavra escrita e essa deve ser generalizável e aplicável a todos por igual. É realmente muito difícil traduzir em factos objetivos o equilíbrio da balança de Maat para cada indivíduo. Talvez até seja desajustado, uma vez que a imagem poética da balança de Maat é isso: uma metáfora. Não se podem mensurar metáforas. Quando se faz isso, a verdade esconde-se e o discurso torna-se opaco. É talvez o que acontece repetidas vezes ao longo da história dos homens, das civilizações e dos direitos, quando as palavras de justiça são utilizadas para outros fins que não, realmente, a justiça. E assim se percorrem mais de 3000 anos sem que um simples princípio de proporcionalidade enunciado inicialmente na Mesopotâmia, esteja efetivamente aplicado, na Europa do século XVI.


“Ora, a igualdade é, segundo penso, impossível, pois enquanto cada um tiver a posse individual e absoluta dos bens, enquanto um indivíduo de arrogar diversos títulos e direitos para chamar a si tudo quanto pode, de modo a que um pequeno número de indivíduos dividem entre si toda a riqueza, por maior que seja a abundância e a prosperidade, a maior parte do povo viverá na miséria e na indigência.”***


Sir Thomas More mostra-nos, mais à frente na sua narrativa, como o assunto é complexo e, na verdade, a desproporcionalidade da punição deriva de um tratamento reiteradamente desigual entre seres humanos: aqueles que concentram a riqueza e os carenciados. A exploração do trabalho das classes inferiores e a concentração de propriedade numa elite de privilegiados: eis duas peças essenciais numa máquina que tritura seres humanos tratados, também estes, como propriedade e desperdício. Então, neste contexto, a punição desproporcional não o é apenas porque o “forte” de que falava Hamurabi, era, por alguma razão, mais forte que o fraco, a punição desproporcional é usada como exemplo. E então, a injustiça agiganta-se, horrenda. O indivíduo pobre que roubou para comer já não é apenas vítima de um outro mais forte, sendo também a vítima sacrificial numa encenação que visa o exemplo social. Aliás, o que aqui vemos já não é um exercício de justiça, mas um exercício de temor.

Por outro lado, se pensarmos que o Código de Hamurabi emanou do próprio soberano e que Thomas More foi condenado à morte por alta traição, temos razão para ficarmos preocupados. Mais de 3000 anos depois, não seria apenas o crime de furto que correspondia à pena de morte, mas também o de divergência com o monarca (chanceler do reino à altura, More não concordou com o divórcio do rei Henrique VIII e negou-se a reconhecer a nova rainha, Ana Bolema). Não só o princípio da proporcionalidade não é, aqui, observado, como também esta é uma encenação de justiça ao serviço do temor a um déspota.

Adiante. Mas então, o que faz do século XVI europeu uma era de humanismo? Entre outros, o texto de More. A clareza com que ele nos demonstra o processo social que leva à indigência e a uma justiça injusta. No seu texto “Utopia”, especialmente na primeira parte, temos a sensação de ter descolado das infantilidades da “lei de talião” e da deriva mitológica de Maat. A explicação é clara, há uma tentativa de observar o todo e de compreender os mecanismos sociais que geram os problemas identificados.

A clareza. “A clareza é uma abertura de portas civilizada; uma obrigação intelectual” – dizia-nos, há poucos dias (século XXI!), Eugénio Lisboa. Talvez seja um princípio distintivo do humanismo: a clareza.


Isabel Fernandes Pinto, 30/agosto/2021



**MORE, Thomas – Utopia. (trad. Maria Isabel Gonçalves Tomás), Lisboa: Edições Europa-América, 3ª edição, 1995, p. 27.

***MORE, Thomas – Utopia. (trad. Maria Isabel Gonçalves Tomás), Lisboa: Edições Europa-América, 3ª edição, 1995, p. 57.

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