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Um encontro ao fim da tarde

Foto do escritor: FAUNAS teatro portátilFAUNAS teatro portátil

Em 2013, em pesquisa sobre o ofício da moagem artesanal, fomos ter a casa de Benjamim Enes Pereira, numa aldeia de Viana do Castelo, pela mão do Sr. Eugénio, proprietário de um moinho de vento recuperado recentemente. Depois da visita, disse-nos: "Vocês deviam era falar com o Sr. Dr., vou ver se é possível". Foi possível e lá fomos, ignorantes da obra de um homem que moldou a etnografia portuguesa. Na altura, escrevi este relato, no meu diário de trabalho:

“Sabes, Eugénio…” O Eugénio talvez soubesse, porque os olhos daquele homem diziam tudo antes das palavras que articulava com dificuldade através do aparelho fonador pós-operatório. O homem de cultura, grande antropólogo reconhecido internacionalmente e condecorado pela presidência da república portuguesa, olhava o Eugénio com um sorriso grato e dizia-lhe: “Sabes, Eugénio, o que tu fizeste, poucas pessoas farão”. Eugénio enchia o peito de alegria e fazia aquele gesto “faz-se o que se pode” tão português, naquela modéstia de quem se orgulha do que fez mas não o quer dizer. Eugénio reconstruiu um moinho de família. Benjamim estudou os moinhos, arados e muitos outros elementos irremediavelmente votados aos museus da etnografia portuguesa. Falou-nos da vida, de que há coisas que se perdem inexoravelmente. Inexoravelmente. O tempo não volta atrás, nunca há regresso. A vida é sopro. Muito negligenciamos, muito deixamos de lado. Avançamos. O curso da vida é sempre para a frente. Arados milenares deixaram de ter sentido há poucas décadas. Acabaram agora. Estamos a assistir ao fim de tecnologias milenares. O que finda não volta, o que inicia e permanece continua. E a vida é este caminho sem fim, onde seguimos indagando o passado, perscrutando o futuro e negligenciando muitas vezes o presente. Onde estamos? Neste fluxo que não para: é sopro. Inexoravelmente.

Chegamos àquela casa, era quase noite. Uma casa de lavoura minhota. Entramos pelo portão dos carros e atravessamos a eira. Tinham malhado o milho naquela tarde, com malhadeira elétrica. “O que fazem às maçarocas?” “Brasas para assar”. Tudo se aproveita. O antropólogo condecorado pela república portuguesa estava no piso superior, numa sala da casa antiga, sentado num cadeirão à luz quente de um candeeiro de pé. A sala, para onde subimos por uma escadaria de granito, tinha teto de masseira e era forrada a estantes pejadas de livros, com alguns objetos e fotografias. Benjamim Enes Pereira tinha feito uma operação à garganta e falava a custo, numa voz soprada de que dificilmente se distinguiam as sílabas.

Fomos recebidos por uma mulher de meia-idade que nos encaminhou até essa sala e desapareceu. Ficamos de pé, sem saber bem o que fazer, na presença daquele homem que desconhecíamos, mas parecia guardar tanta experiência, tanta sabedoria, e que, com grande dificuldade física, fazia do ar palavras. De início, era um pouco aflitivo escutá-lo, ficávamos suspensos e sôfregos pelo tanto que ele teria para nos dizer. A nós, que tanto nos agitamos e falamos e mexemos e controlamos. Ele não. Ele era como um passageiro do tempo, ali sentado no seu cadeirão de transporte pelos segundos, pelas horas, pelos dias, entre as paredes forradas de livros e o mar ao fundo. Porque havia uma janela por onde se via o mar, estava atrás dele. “Sentem-se”. Sentamo-nos no sofá olhando-o e escutando as suas palavras escolhidas. Dizia poucas. Começava cada frase repetidamente assim: “Sabes, Eugénio…”

“Eu sinto nostalgia de um tempo em que o tempo era longo. A minha vida foi uma grande aventura; só fiz uma coisa de que não gostava durante dois anos, de resto foi sempre uma enorme aventura. Nós negligenciamos muitas coisas da vida, há muitas coisas que nos passam ao lado. Nós queremos a facilidade. Sabes, Eugénio, o capitalismo não responde a todas as necessidades do homem. O fluir dos acontecimentos é inexorável; há práticas milenares que terminaram; o pequeno mundo rural acabou; as células desagregam-se”.

A morte pacífica de um homem que viveu e que, sentado na sua poltrona, do alto da sua vida, olha o mundo e se despede. Não há alegria nem tristeza, nenhuma emoção à superfície. Apenas uma gratidão serena, talvez. A paz. E a doçura humana. A doçura daquele olhar acompanhado por palavras paternais, meigas como um afago: “Sabes, Eugénio…”.

Já tarde, ele levantou-se e veio acompanhar-nos à saída. Contra o breu da noite, do vão da porta envidraçada, a sala iluminada enquadrava a imagem de um corpo grande, um homem imenso, um conjunto de células que, lentamente, se desagregam.

*

2/1/2020

Isabel Fernandes Pinto

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