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Foto do escritorFAUNAS teatro portátil

Ritual

Atualizado: 30 de ago. de 2021

É um ritual que nos acompanha há dezasseis anos. Deixar o cenário e os figurinos prontos, arrumados na carrinha, adormecer a dizer o texto, ir sonhar com a peça e depois, de manhãzinha, arrancar (desde há 6 anos, deixar primeiro a miúda na escola ou com uma senhora que fique a tomar conta dela, se saímos de madrugada).

Colocar a morada no GPS (antigamente imprimir as instruções do “Via Michelin” na véspera), “bater” texto (para não batermos “no” texto) enquanto se conduz, parar naquela estação de serviço para o habitual pão com queijo (se for caso disso), ver o amanhecer a ouvir o José Candeias na Antena 1 (se for caso disso), chegar.

Chegar muitas vezes antes dos professores e educadores: “Bom dia, somos/sou do projeto faunas, vimos/venho fazer o teatro”. Entrar no espaço de apresentação pela primeira vez, sentir a acústica, a temperatura, a luz, decidir logo onde montar o cenário, arrastar a mobília (Oh gesto subversivo de que nos rimos por dentro!), descarregar a carrinha, colocar o chão de cena e montar o dispositivo cénico. Às vezes, varrer o chão antes (temos uma vassoura incorporada num dos cenários). E fazer daquele espaço o lugar sagrado de um palco.

Somos muito convencidos. Temos que ser. É impossível fazer isto sem nos convencermos da lei irredutível da imaginação. Também se constroem muralhas, castelos e naves espaciais. Nós construímos um palco. Que dura uma manhã, mas, (esperamos nós, que somos, realmente, muito convencidos), permanece dentro de quem vê. Queremos que o público beba teatro connosco. Bom teatro. Saboroso, embriagante e cristalino. Não que as peças o sejam (não somos assim tão convencidos, viciados em criticar, reescrever e ensaiar muito), mas que o ato de o fazer é – disso temos a certeza. Dar. Dar sempre. Com aquela firmeza, aquele olhar infinito com que o Adam Darius me disse um dia antes de entrar no palco: “Concentrate yourself… and give”.

Hoje, apresentei duas récitas de “Heróis pequeninos” num Jardim-de-infância. Sou sempre relutante – os meus colegas sabem bem – em fotografar estes momentos. Não há tempo. A engrenagem, a exigência de concentração, a gestão da energia e das diferentes etapas do processo não me permitem desviar o foco. Mas agora que cheguei, sentada de pernas estendidas e o corpo trémulo de cansaço, arranho estas palavras que irão acompanhar duas tentativas de fotografias muito mal feitas (sou muito convencida da minha inabilidade completa para fotografar). Há qualquer coisa no teatro que me apaixona imensamente. Talvez seja um imenso desejo de ser canal entre gentes, tempos e palavras. Um imenso desejo de ser taça. Uma embriaguez de humanidade.

Suspiro. Isto parece mais uma página de um diário do que o texto de um blog. Peço imensa desculpa, mas não sei fazer de outra forma. A tendência será, certamente, para piorar.

Até breve.


Isabel Fernandes Pinto, 18-6-2021



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