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  • Foto do escritorFAUNAS teatro portátil

Uma explicação muito simples


Milan Kundera escreveu que “a vida é um esboço sem quadro”, como o ensaio de um espetáculo que nunca chega a estrear, uma sucessão de improvisos condenados ao erro. Sim, é possível que assim seja. Mas todos aqueles que desenham e fazem teatro sabem que, para fazer um bom esquisso, é preciso fazer muitos; para improvisar bem, é preciso improvisar muito. E é precisamente aí – nesse espaço de ensaio, de esboço, de experimento – que entra (ou deveria entrar muito mais do que aquilo que entra) a “Educação Artística”.

O ator que cruza o palco vazio fá-lo entre a consciência mecânica da sua ação e a consciência espacial do seu gesto. Rasgando o espaço, ele define aquele território. O ator preenche o espaço vazio. O pintor também. A primeira linha, a primeira mancha, o gesto, a cor, a definição, a forma, a relação com os limites, são opções que, quem desenha, tem que fazer. Mesmo que esse alguém seja uma criança. Não estou com isto a querer dizer que uma criança é um artista, longe disso. Uma criança é um ser humano em construção. E, para se construir, tem que pensar a forma, escolher o material e, com isso, erguer o edifício. Várias vezes. Não sai bem à primeira. A criança, organizando a sua folha de trabalho, escolhendo a cor, o material de pintura, a técnica, lapidando as formas e os limites desse novo mundo que é aquela folha pintada, vai ensaiando escolhas que fará para a sua vida. Aprende que é capaz de criar algo que ainda não existia, aprende que pode escolher, aprende que as suas escolhas produzem resultados efetivos. Se é bonito, se é feio, se parece assim ou assado, se exprime isto ou aquilo são irrelevâncias a que os adultos gostam de se apegar. Porque a criança, esse edifício em construção, não está acabada; aquilo que ela exprime hoje é apenas uma etapa do seu processo e deve ser olhada assim, na sua condição transitória. Ela é sempre capaz de se redescobrir, de se redesenhar – sejamos nós capazes de lhe dar esse espaço, esse tempo.

Porque, nesse tempo precioso, a criança vai poder olhar para o seu desenho com consciência crítica. Ela vai olhar para o seu trabalho e, por vezes, ela vai procurar corrigir alguns aspetos. Então, sem o racionalizar, a criança está a dialogar consigo própria, sendo aquelas correções os passos que ela dá no sentido de aproximar o seu trabalho das suas próprias ideias, de dar existência concreta ao seu imaginário. Assim, o trabalho – o “trabalho de Educação Artística” – torna-se um campo infinito de possibilidades que a criança vai tornando mais definido, mais finito, mais seu. Errando, errando de novo, errando melhor – como nos disse Becket – a criança aprende a conhecer-se. Aprende o que quer, o que não quer e, mais do que tudo, aprende-se como ser atuante, capaz de criar, de optar, de se construir em liberdade consciente.

Esquissando, ensaiando, ela vai concretizando os sonhos para aquela que Agostinho da Silva chamava “a maior obra de arte de qualquer pessoa: a sua própria vida”. É para isso que servem as expressões artísticas no ensino, principalmente no primeiro ciclo.

Era para isso.

Para a motricidade fina, ponham-nos no xadrez. Para desenvolver o gosto, levem-nos aos museus. Mas as expressões – mais do que a “educação” – artísticas são outra coisa: ferramentas de construção do indivíduo consciente de si próprio no mundo.



10/setembro/2023

Isabel Fernandes Pinto

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